Relatório aponta militares comprados pelo garimpo na TI Yanomami no início da gestão Bolsonaro

Ligação entre os militares e os alvos das operações é narrada em outras situações, conforme aponta o documento

Folhapress Folhapress -
Relatório aponta militares comprados pelo garimpo na TI Yanomami no início da gestão Bolsonaro
Garimpo na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. (Foto: Divulgação/Polícia Federal)

JOÃO GABRIEL

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Um batalhão do Exército apreende uma embarcação dentro da Terra Indígena (TI) Yanomami com R$ 2.650 em dinheiro vivo, gramas de ouro, crack, base de cocaína e munições 9 mm. Durante a abordagem, nota-se que o piloto é primo de um dos soldados presentes na operação.

A ligação entre os militares e os alvos das operações é narrada em outras situações, conforme descrito em dois relatórios preliminares de inteligência da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) feitos em 2019, no início do governo de Jair Bolsonaro (PL), e aos quais a Folha de S.Paulo teve acesso.

Os documentos apontam uma relação próxima entre integrantes do Exército que atuavam em Roraima e o já então crescente garimpo ilegal do território Yanomami, hoje em estado de emergência.

Elaborados no âmbito da 5ª fase da operação Ágata -executada no segundo semestre daquele ano para a criação de uma barreira de controle no baixo rio Mucajaí (a oeste da capital Boa Vista)-, os documentos trazem entrevistas com pessoas encontradas durante as ações, mas não chegam a aprofundar a apuração dos fatos narrados.

Os relatos dão conta de que garimpeiros tinham relação de parentesco com militares do Sétimo Batalhão de Infantaria da Selva (BIS), que por sua vez vazavam informações sobre operações de combate à atividade ilegal e permitiam a circulação de ouro ou drogas mediante pagamento de propina.

A Folha questionou a Funai e o Ministério da Defesa sobre quais providências foram dadas às informações colhidas durante a incursão e se as denúncias foram apuradas, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto. O Exército Brasileiro afirmou, por meio de sua assessoria, que tal demanda não lhe compete.

A situação dos Yanomami voltou aos holofotes após a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a Roraima, quando foi decretado estado de emergência na saúde da TI após quase 600 crianças morrerem e centenas serem diagnosticadas com desnutrição, malária, pneumonia e outros sintomas relacionados ao impacto do garimpo ilegal na região.

Dados do Hospital da Criança enviados ao Ministério Público Federal em Roraima mostram que, do início de 2018 até o meio de 2021, 262 crianças foram atendidas com desnutrição. Entre julho de 2021 e julho de 2022, foram 273 -em ambas as situações, 80% dos casos eram de menores de cinco anos.

Os depoimentos colhidos no início do governo Bolsonaro, inclusive, já apontavam esses e outros problemas.

Durante a operação em 2019, segundo o relatório, diversos garimpeiros foram atendidos com malária, muitos indígenas apresentavam sintomas de alcoolismo e um servidor público supostamente revendia o material apreendido nas operações de fiscalização.

Em 17 de agosto, o batalhão que realizava as ações se reuniu com lideranças da aldeia Sikamabiu. “A principal pedida da comunidade é ajuda em relação a medicação. Dizem que necessitam do máximo apoio possível, e que metade de suas crianças adoeceram recentemente por causa da poluição no rio [causada pelo garimpo]”, diz o documento.

O texto também aponta diversas vezes para a atuação de integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) na região e a relação entre o tráfico de drogas e o transporte de minerais ilegais pelos rios e florestas da TI Yanomami, que faz fronteira com a Venezuela.

Se em 2022, à Folha, Junior Hekurari afirmou que indígenas de uma aldeia desaparecida haviam sido cooptados pelo garimpo, já três anos antes os relatos davam conta da prática, mediante pagamento –“dinheiro vivo não é usado na região, somente ouro”.

Diversos são os depoimentos sobre pessoas que trabalham nos acampamentos ilegais de exploração do solo e que se dizem familiares de militares do Sétimo Batalhão, ou que conhecem colegas de trabalho que o são.

No dia 25 de agosto, o relatório afirma que o batalhão fez uma série de incursões em acampamentos do garimpo, apreendendo ouro, combustível, armamento e destruindo maquinário, como antenas e motores.

“Ao chegar na ‘Currutela do Coito’ […] encontramos o local totalmente vazio, com exceção de um cidadão e sua esposa. Ficou claro que todos sabiam da chegada da tropa e evacuaram o local. A ‘currutela’ ocupa uma área grande, e estava com muito lixo recente, dando a entender que estava totalmente ocupada há pouco tempo”, diz o texto.

Os relatos dos abordados, tanto de indígenas como de garimpeiros ou trabalhadores dos acampamentos, apontam nomes, patentes e até contato de celular daqueles militares que supostamente recebiam propina para vazar informações sobre as operações ou permitir a entrada ilegal na TI.

Em um dos depoimentos, que segundo o documento é de uma fonte com credibilidade -mas que não terá seu nome publicado por motivos de segurança-, o dono de uma embarcação diz que seu chefe, um proprietário de terras da região, recebeu uma foto do comboio militar ainda saindo de Manaus (AM) em direção a Roraima para ajudar nas operações.

“[Meu chefe] possui diversos militares comprados que trabalham como informantes”, diz a pessoa no depoimento, que relata ainda que o patrão teria em sua folha de pagamento inclusive um terceiro sargento do Exército. “[Eles] permanecem passando informações das operações para ele, oriundas de Manaus.”

No dia 18 de agosto daquele ano, o batalhão entrevista um garimpeiro que diz que há um grupo de WhatsApp em que militares passam informações para o garimpo e fornece números destes integrantes das Forças Armadas “que estão envolvidos”.

Há ainda outro depoimento que diz que um homem separa dez gramas de ouro por mês para pagar “militares que entregam informações sobre as operações” e avisam “quando [os soldados] entram [na TI] e quando saem, e como entram e quantos são”.

Toda a operação aconteceu entre julho e agosto de 2019, logo depois de o ex-presidente da Funai, o policial Marcelo Xavier, ser nomeado pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, para chefiar o órgão. Xavier permaneceu no cargo até o fim do governo Bolsonaro.

No total, a operação mapeou três pistas de pouso clandestinas, 14 clareiras abertas para pouso e decolagem de helicópteros, 36 garimpos, balsas ou acampamentos, quatro bordéis e 41 frequências de rádio utilizadas para comunicação.

Também foram apreendidos mais de 78 gramas de ouro, dinheiro vivo, mercúrio, drogas (como crack e cocaína), embarcações, motores, rádios, mais de mil litros de gasolina e 16 armas e munições.

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