Acusação de racismo pode ampliar pena dos assassinos de Moïse

Ele sofreu golpes de cinco pessoas e teve as mãos amarradas, tudo aconteceu em um quiosque na Barra da Tijuca

Folhapress Folhapress -

UIRÁ MACHADO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mesmo que os assassinos do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, afirmem que a motivação do crime nada teve a ver com questões raciais, ainda assim o racismo deveria ser levado em conta na acusação, provocando aumento de pena numa condenação judicial, dizem especialistas consultados pela Folha de S.Paulo.

De acordo com Dora Lucia de Lima Bertulio, procuradora da Universidade Federal do Paraná e mestre em direito constitucional e relações raciais, as pessoas podem se perguntar: “Será que precisaria que chamassem ele [Moïse] de ‘negro vagabundo’, por exemplo, para que a motivação fosse racismo?”.

Resposta de Bertulio: não.

“O que confirma o ato de racismo é a liberdade dos indivíduos com relação à vida negra”, afirma. “As pessoas sentem uma liberdade com relação ao corpo negro que não sentem com relação ao corpo branco. E o mais terrível é que não necessariamente o agressor tem que ser branco. Ele pode ser negro também.”

Moïse foi morto a pauladas ao lado de um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio. Ele sofreu golpes de cinco pessoas e teve as mãos amarradas. Foi atingido quando estava imobilizado e mesmo quando parecia desacordado, conforme mostram imagens da câmera de segurança.

A juíza Karen Luise Souza Pinheiro, titular da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, desenvolve raciocínio semelhante ao de Bertulio.

Argumentando sem falar do caso concreto, ela diz: “Embora o autor não verbalize que está matando porque a vítima é negra, ele apenas age assim em razão dessa circunstância. Caso fosse uma pessoa branca, naquela circunstância, teria agido de modo tão desprezível em local público, com tamanha crueldade e desprezo pela vida humana? Provavelmente não”.

Ou seja, nessa linha de pensamento, a cor da pele da vítima é determinante para a conduta do agressor, mesmo que isso não esteja explícito.

Fabio Mantovan, da Defensoria Pública de São Paulo, discorda desse entendimento. Para ele, é preciso que as investigações comprovem a motivação racial dos assassinos para que esse fator seja considerado na sentença.

“Não existe uma presunção absoluta. Não se pode presumir essa motivação só pelo fato de a pessoa ser negra”, afirma.

O mesmo debate ocorreu no homicídio de João Alberto (Beto) Silveira Freitas, homem negro de 40 anos que foi espancado num Carrefour da capital gaúcha.

Roberta Bertoldo, delegada do caso, afirmou à época que não houve provas de ofensa racial. Mas disse: “E se fosse com outra pessoa [não negra], isso teria acontecido? É a pergunta que todos se fazem. Nós sabemos que não”.

Se as autoridades policiais e o Ministério Público do Rio seguirem a linha do caso Beto Freitas, o racismo entrará como um dos motivos para o assassinato de Moïse. Na prática, isso significa acrescentar mais um fator que vai pesar contra os acusados quando for sair a sentença.

Pela legislação brasileira, um homicídio intencional pode ser simples (com penas de 6 a 20 anos) ou qualificado (penas de 12 a 30 anos). Para o segundo caso, é preciso que exista pelo menos uma das chamadas circunstâncias qualificadoras descritas no Código Penal.

O advogado Robson de Oliveira, ex-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em São Paulo, aponta pelo menos quatro possíveis circunstâncias qualificadoras do assassinato de Moïse:

– mediante recurso que dificultou a defesa da vítima (superioridade numérica e de armas)

– emprego de meio cruel ou tortura (foram desferidas dezenas de pauladas)

– motivo fútil (falta de proporção entre o crime e a causa)

– motivo torpe (razão considerada imoral).

O racismo entraria nesse último item, o motivo torpe.

A presença de qualificadoras interfere no cálculo da pena de duas maneiras. Primeiro, há um aumento automático da pena mínima (passando de 6 para 12 anos) e máxima (de 20 para 30 anos) com a mudança de homicídio simples para qualificado.

Depois, quanto mais qualificadoras houver, mais elementos o juiz tem para se afastar do mínimo e se aproximar do máximo ao fixar a pena. A lei, porém, não especifica de forma objetiva como esse cálculo deve ser feito.

Na avaliação de Oliveira, o racismo ainda poderia ser considerado como um crime em si, previsto na lei 7.716 de 1989. A pena, nesse caso, seria de 1 a 3 anos e aumentaria a aplicada pelo homicídio.

O defensor público Fabio Mantovan também questiona essa visão. Ele afirma que, no direito penal, é necessário haver uma correspondência exata entre a conduta de uma pessoa e o que está descrito na lei. “E não existe na lei [que define os crimes resultantes de preconceito] nenhuma descrição típica para isso [o assassinato] como racismo”, diz.

XENOFOBIA

Oliveira ainda considera que a xenofobia deveria ser levada em conta nesse caso como mais uma qualificadora. “É um comportamento de desconfiança e temor em relação a pessoas que sejam estranhas ao meio, gerando aversão, hostilidade e ódio”, diz ele.

A procuradora Dora Bertulio, do Paraná, a princípio não aponta a xenofobia. Ela argumenta que não há no Brasil um histórico de agressão a estrangeiros em geral e que a população costuma ser receptiva com quem vem de fora.

“Mas isso só é verdade em relação a indivíduos brancos”, afirma. Para ela, não é o fato de Moïse ser estrangeiro que deu aos seus assassinos a sensação de liberdade para cometer o crime, e sim sua negritude. O caso Beto Freitas, brasileiro e negro, reforça o seu ponto.

Por enquanto, três homens confessaram o crime e ficarão presos por pelo menos 30 dias: Aleson Fonseca, 27, Brendon da Silva, 21, e Fábio Pirineus da Silva, 41. Todos negam cunho racista ou xenófobo nas agressões.

Imagens de segurança do quiosque Tropicália mostram Moïse discutindo com um funcionário do local, segundo quem o congolês estava bêbado e queria pegar cerveja de graça. A seguir, começa a briga que termina em espancamento e morte.

Familiares do congolês disseram à imprensa que ele foi cobrar uma dívida no quiosque. Contudo, esse tema não é mencionado em nenhum depoimento dado à polícia, nem mesmo nas falas dos parentes da vítima.

A polícia ainda investiga para esclarecer a motivação do crime.

O QUE DIZEM AS LEIS

Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989

Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor

Artigo 1º: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Artigo 20: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena – reclusão de um a três anos e multa.”

Código Penal (decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940)
Homicídio simples
Artigo 121: “Matar alguém:
Pena – reclusão, de 6 a 20 anos.

(…)

Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II – por motivo fútil;
III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;
V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:
Pena – reclusão, de 12 a 30 anos”

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