Projeto contra delação discutido na Câmara ignora legislação existente

Pautada pelo presidente da Casa, proposta fala em "instrumentalização" da "privação cautelar da liberdade"

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Projeto contra delação discutido na Câmara ignora legislação existente
Plenário da Câmara dos Deputados – (Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados)

ANA GABRIELA OLIVEIRA LIMA

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O projeto de lei discutido na Câmara dos Deputados para proibir a delação de presos ignora dispositivo presente na legislação em vigor e entendimento consolidado do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o tema, apontam especialistas.

Pautada pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), a proposta fala em “instrumentalização” da “privação cautelar da liberdade” ao questionar a voluntariedade de pessoas presas na hora de aceitar a participação em delações premiadas.

“A privação de liberdade, por si só, constitui circunstância apta a provocar uma redução do grau de autonomia no que concerne à livre manifestação da vontade por parte das pessoas custodiadas”, diz trecho da justificativa do projeto.

O tema, entretanto, já foi abordado no pacote anticrime (lei 13.964/2019), posterior ao projeto sobre delação apresentado em 2016 e resgatado agora pela Câmara. A lei em vigor há cinco anos enfatiza que a observância da voluntariedade deve ser dada “especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares”.

Na quarta-feira (12), um requerimento de urgência da proposta foi aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados em menos de dez minutos e de forma simbólica –quando não há contabilização dos votos.

A urgência acelera a tramitação de uma matéria, já que ela não precisa ser analisada nas comissões temáticas da Casa e segue direto ao plenário. Os deputados ainda precisarão votar o mérito do texto.

Em sua fundamentação, o projeto traz considerações sobre as prisões brasileiras, chamadas de “estruturas sucateadas e superlotadas”, e cita histórico como o da Operação Lava Jato, marcada pela “adoção de ilegítimas estratégias processuais com a finalidade de forçar o investigado a, vendo-se fragilizado, se pôr a colaborar com as apurações”.

A colaboração premiada é um acordo entre investigador e investigado, no qual o segundo se compromete a ajudar na investigação em troca de benefícios negociados, como a diminuição de pena.

Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo avaliam que o projeto ignora mudanças legislativas que regulamentaram o instituto da delação premiada, notadamente o pacote anticrime, e afirmam que o texto remete a um contexto anterior a alterações ocorridas desde que os acordos da Lava Jato passaram a ser questionados.

Além disso, afirmam que a questão já está pacificada pelo Supremo. “O PL [projeto de lei] vai de encontro à nova previsão legislativa sobre a colaboração premiada. O ponto que mais me chamou a atenção foi o fato de não terem sido mencionadas as alterações provocadas pelo pacote anticrime”, afirma Luísa Walter da Rosa, advogada criminalista e mestre em direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Segundo ela, o debate sobre a voluntariedade de presos em casos de delação já foi feito e o momento é de focar em novas reflexões que podem continuar a aperfeiçoar o instituto. Como exemplo, cita a necessidade de discutir os efeitos da rescisão dos acordos e a extensão dos benefícios entregues aos delatores.

A aprovação do projeto, afirma, seria cenário negativo para o combate ao crime organizado, intimamente ligado ao instituto das delações.

“Além disso, o projeto viola ainda mais os direitos de quem está encarcerado, porque propõe limitar o direito de defesa de quem está preso de se valer de um benefício processual.”

Ricardo Yamin, professor de processo civil da PUC-SP, concorda que o texto desconsidera as mudanças ocorridas no país desde a época da Lava Jato e que o STF já pacificou a questão. “O tribunal decidiu mais de uma vez que o importante no caso de o réu delatar é a liberdade psíquica, não a física”, afirma.

Apesar disso, diz ser pessoalmente contra a delação de presos e que o debate da questão no Parlamento, desde que despolitizado, é importante.

“O dispositivo [presente no pacote anticrime] já é o suficiente do ponto de vista jurídico para resolver quaisquer questões. Se amanhã ou depois o advogado de quem quer que seja junta aos autos elementos demonstrando qualquer violação a essa suposta voluntariedade, poderia haver a nulidade”, afirma Jordan Tomazelli, mestre em direito processual pela Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo).

O que se pode fazer para continuar a aprimorar a lei é especificar de forma mais objetiva que elementos devem ser trazidos aos autos para aferir a voluntariedade do delator preso, diz.

Para Tomazelli, a aprovação do projeto criaria novos problemas, pois tolhe o direito de acessar o instituto, que funciona como um benefício para o investigado.

Gustavo Sampaio, professor de direito constitucional da UFF (Universidade Federal Fluminense), afirma que a colaboração de presos é válida desde que a prisão ocorra de maneira regular.

Ele afirma ser favorável à colaboração premiada com investigado preso quando a prisão preventiva tenha ocorrido com base nos fundamentos do artigo 312 do Código de Processo Penal. “Nunca se a prisão for decretada com a finalidade de forçar alguém a delatar”, diz.

Segundo o artigo, a prisão preventiva pode ser decretada como “garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

Em entrevista na última segunda-feira (10), o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, disse que cabe ao Congresso deliberar sobre o tema, mas que as delações têm funcionado, “com as adequações que o Supremo impôs, como uma ferramenta positiva”. “O fato de o réu estar preso não é em si um problema.”

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