Rússia condena repórter americano a 16 anos de cadeia por espionagem
Jornalista do The Wall Street Journal foi preso no fim de março do ano passado em Iekaterimburgo
IGOR GIELOW
Em uma decisão surpreendente pela velocidade, mas não pelo conteúdo, a Justiça russa condenou nesta sexta (19) o repórter americano Evan Gerchkovitch a 16 anos de cadeia sob a acusação de espionagem -o que ele nega. É o primeiro caso do tipo desde a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética.
O jornalista do The Wall Street Journal, preso no fim de março do ano passado em Iekaterimburgo, principal cidade na divisa das porções europeia e asiática da Rússia, agora deverá ser objeto de uma troca de prision eiros, embora o Kremlin tenha se recusado a comentar a possibilidade.
O julgamento de Gerchkovitch, conduzido a portas fechadas, normalmente duraria cerca de dois meses, podendo chegar até a um ano a depender do juiz do caso. Agora, foi menos de um mês: o processo começou em 25 de junho e teve sua segunda audiência na quinta (18).
Na sessão, a promotoria pediu 18 anos de prisão, dos 20 a que ele poderia ser sentenciado pelo crime apontado. Nesta sexta pela manhã (madrugada no Brasil), a corte emitiu um comunicado afirmando que iria divulgar sua decisão, algo extremamente inusual. Além dos 16 anos, o juiz ordenou a destruição de seu celular e de seu laptop.
“Esta condenação vergonhosa e falsa ocorre depois de Evan ter passado 478 dias na prisão, detido injustamente, longe da sua família e amigos, impedido de reportar, tudo por fazer o seu trabalho como jornalista. Jornalismo não é crime e não descansaremos até que ele seja libertado”, afirmou o WSJ em nota.
O presidente Joe Biden disse que “não há questão de que a Rússia está detendo Evan de forma errada”, e ressaltou que trabalha por sua libertação. O premiê britânico, Keir Starmer, chamou a sentença de “desprezível”, e a ministra alemã Annalena Baerbock (Relações Exteriores), de uma prova do temor russo da verdade.
A leitura política acerca da rapidez do desfecho é de que o governo de Vladimir Putin quer acelerar o processo de libertação de Gerchkovitch, provavelmente o trocando pelo agente Vadim Krasikov, condenado na Alemanha por matar um ex-comandante rebelde tchetcheno.
Nesta sexta, o porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, disse que não comentaria o caso. Antes, ele já havia dito que essas negociações precisam ocorrer fora do holofote da mídia para funcionar. A praxe russa é só efetuar essas trocas após a condenação do acusado.
Foi o que ocorreu no fim de 2022, quando uma jogadora de basquete americana presa sob acusação de tráfico acabou trocada por um “senhor das armas” russo.
Gerchkovitch, 32, é acusado pela promotoria de espionar segredos militares, o que ele nega. Em março de 2023, ele viajou a Iekaterimburgo para, segundo conhecidos, apurar uma reportagem sobre a capacidade industrial da Uralvagonzavod.
Ele recebeu, segundo o relato dessas pessoas à Folha, documentos com dados de fabricação e reparo dos armamentos, no contexto da Guerra da Ucrânia. Para elas, que corroboram a versão do repórter de que ele só estava fazendo seu trabalho, houve uma armação para prendê-lo.
No dia 29 de março, foi levado encapuzado por agentes do FSB, o serviço sucessor da KGB soviética, do Bukowski Grill, um popular restaurante ao lado da igreja construída no local em que a família imperial russa foi executada pelos bolcheviques em 1918.
O FSB não comentou o episódio. A promotoria afirma que Gerchkovitch estava a serviço da CIA, a agência principal de espionagem dos EUA, o que o jornalista, o WSJ e o governo americano negam. Nenhuma prova foi apresentada ao público, e o julgamento foi secreto.
A chancelaria russa, responsável por emitir credenciais a jornalistas estrangeiros, disse igualmente sem evidências que Gerchkovitch “se escondia” atrás do crachá de imprensa.
Biden havaia criticado a prisão e o processo como uma forma de o Kremlin usar o repórter como peça na disputa política entre Rússia e o Ocidente, agravada ao paroxismo pela guerra iniciada em 2022.
Gerchkovitch está preso em condições de isolamento na notória prisão de Lefortovo, em Moscou, destino de diversos presos políticos na era soviética. Tinha escapado até aqui de uma colônia penal, como a unidade no Ártico que foi a parada final da jornada do líder opositor Alexei Navalni, morto em fevereiro sob circunstâncias misteriosas. Agora, irá para uma.
Embora haja diversos episódios envolvendo estrangeiros presos na Rússia, isso não ocorria com um jornalista credenciado para trabalhar no país desde 1986. Naquele ano, o americano de origem russa Nicholas Daniloff passou 14 dias preso sob uma acusação semelhante à de Gerchkovitch.
Mesmo retirando o elemento CIA da equação, o tipo de apuração que o jornalista fazia é um trabalho arriscado na Rússia, país em que o conceito de vazamento de dados em nome da transparência não é visto com simpatia, principalmente depois do início do conflito com os ucranianos.
Foram aprovadas desde então leis restritivas à liberdade de imprensa, que já levaram vários repórteres locais à prisão.
Foi o caso de Ivan Safronov, condenado a 22 anos de cadeia acusado de espionagem, apesar de alegar ter apenas conversado sobre assuntos militares com interlocutores tchecos quando trabalhava na agência espacial russa.
Veículos independentes e entidades não-governamentais foram fechadas ou mudaram para o exterior. Na semana passada, o jornal The Moscow Times, que passou a operar na Holanda, foi declarado “indesejado”. O mesmo rótulo foi dado na quinta à fundação americana Carnegie, que também já havia fechado seu tradicional escritório em Moscou.