Quando a intolerância chega ao extremo e “justifica” matar o próprio filho

Carlos Henrique Carlos Henrique -
Quando a intolerância chega ao extremo e “justifica” matar o próprio filho

Um rapaz quer ir à uma escola ocupada o super pai protetor diz que não – quem nunca passou por isso? Ambos saem de casa e quando o pai volta  mas não encontra o filho sai à sua procura totalmente desnorteado sendo que ao encontrá-lo nada de bronca, nada de “pagar sapo” mas sim um tiro, um tiro no próprio filho.  Guilherme Neto foi baleado perto da Praça do Avião em Goiânia, fugiu, mas foi perseguido, encontrado e alvejado outra vez. Uma caçada humana pra matar o filho que eu não aceito que exista. O pai, um Engenheiro ao ver o filho morto se debruçou sobre ele  e  se matou  porque não aceitava vê-lo envolvido com movimentos sociais.

A imprensa correu e patologizou este pai rapidamente dizendo o de sempre: “tinha depressão”, “era instável”, “era controlador” e etc. Este rapaz que foi baleado, perseguido e baleado novamente pelo pai por discordância sobre política não foi o primeiro e nem vai ser o último. “Pai mata filho porque descobre que ele é gay”, “porque descobre que ele é de religião divergente da sua”, “porque descobre que ele é ativista social” e mais um monte de motivos fúteis, mas por favor, não usem doença pra justificar isso. Pais matam filhos porque se sentem donos deles, senhores da vida deles, sentem que os mesmos são propriedades que devem total e irrestrita obediência, afinal “meu filho, eu faço o que eu quiser”, quem nunca ouviu isso?

A morte deste jovem Guilherme é bem emblemática e representa um ápice em todo o discurso de ódio e toda a intransigência que tem tomado conta do mundo virtual e do mundo real nos últimos 3 anos. A cada novo evento, eleição, copa do mundo, impeachment, olimpíadas, eleições no Brasil, eleições nos EUA o que se via era o crescimento de um discurso de ódio e de uma intolerância a tudo o que não seguisse um padrão considerado “correto” por correntes mais conservadoras demonstrado com o formato da “liberdade de expressão”.

Fiquei estarrecida com esta morte, como mãe tentei imaginar mas acho que é impossível sequer supor a dor da mãe de Guilherme, que passou a vida jogando água benta no relacionamento entre pai e filho e de repente se vê sem seu único filho, morto por motivo torpe e fútil.

Lendo reportagens sobre o acontecido consegui ver claramente delineados três posicionamentos tidos como tentativas de explicar  este crime. Por incrível, por mais surreal e desumano que pareça, no primeiro posicionamento há os que estão até comemorando esta morte em comentários asquerosos, dizendo que é “um comunista a menos” e que “se o pai matou é porque devia ter algum motivo”. Realmente se você quiser ter sua sanidade preservada não leia os comentários, jamais leia os comentários.

Em um segundo modo de argumentar estão o que desqualificam o rapaz dizendo que “dentro da mochila tinha uma barra de ferro”, “ele não trabalhava”, “ele vivia às custas dos pais”, “ele era a favor da legalização do aborto”,  como se algum destes motivos justificasse dar 4 tiros em um ser humano e matá-lo. Se seu filho desempregado que vive às suas custas sai de casa e leva uma barra de ferro na mochila você acha justo que seu cônjuge vá atrás e o mate com vários tiros? Não, né? Então não use este tipo de argumento fail.

Por último há os que tentam dizer que a morte foi injusta porque “ele era universitário” , “porque ele fazia faculdade de matemática na UFG”, “porque ele era um rapaz quieto e pacífico”. Sabe o que eu vejo nestas frases elogiosas? Eu leio uma explicação que diz que foi injusto porque ele era um rapaz socialmente bem ajustado mas se fosse um noiado perdido, vivendo nas ruas e no crack talvez não fosse tão injusto assim, talvez fosse até compreensível.

O crime da morte do Guilherme é uma barbárie. É a materialização do discurso de ódio e da intolerância pelo crime em si e não pelo fato do assassinado ser um jovem estudante universitário de matemática. Ainda que ele fosse o mais desajustado dos jovens de 20 anos, metido em várias bad trip, cheio de problemas com a lei, nada justifica a animalesca prática de um pai perseguir o filho pelas ruas de Goiânia para matá-lo.

Por fim não posso deixar de pontuar que este tipo de crime acontece em proporção muito maior entre pais e filhos do que entre mães e filhos. Você pode dizer que é por causa do instinto materno que mulheres não matam os filhos na mesma proporção que os homens e aí eu peço outra ocasião para levantarmos a polêmica de Badinter (Uma escritora fantástica)  sobre instinto materno não existir, ok? Mas na minha leitura dos fatos esta disparidade de mortes de filhos causadas por pais em comparação das mortes causadas por mães se justifica pelo pai ver os filhos como sua herança, seu legado, sua posse.

O filho (homem de preferência) é o que carrega o nome e o legado do pai e geralmente é neste que o pai deposita toda o seu anseio de realizações, se realizar no filho naquilo que não fez na própria juventude. Isto tem tudo pra dar errado porque filhos podem ter gostos, crenças, sexualidade, orientação política completamente diferente dos seus pais. Quando o pai vê o filho unicamente como sua continuidade, como sua propriedade, como alguém que deve obedecê-lo e fazer o que o pai manda então acontecem estas tragédias injustificáveis.

Diferentemente a maioria das mães quando descobre que o filho é gay, travesti, “cracudo”, abandonou a escola, ocupou a escola, miçangueiro, usuário de drogas faz o quê? Chora, briga, descabela, sofre genuinamente e depois continua a amar e a lutar pelo filho que não é nada do que ela sonhou mas que continua sendo meu filho. Ela faz o luto pelo filho idealizado que perdeu, aprende a conhecer e a se aproximar deste seu “novo filho” e aprende a amar, a lutar por ele (quando preciso) porque no fim das coisas é o seu filho, seu rebento, só que é um filho real e não o filho idealizado do seus sonhos maternos.

Que a morte do Guilherme seja um grito a nos lembrar  dos tempos intolerantes e beligerantes que temos vivido em todo o mundo. O acirramento de posições, a polarização de ideias, o discurso de ódio contra minorias cresce e se fortalece a cada dia como se estivéssemos de volta ao mundo bipartido da Guerra Fria. Ou pior do que isso, como se estivéssemos cada vez mais caminhando para um mundo de crença única, discurso único, prática única, comportamento único aonde os diferentes devem ser eliminados.

Guilherme tinha 20 anos. Antes de usar qualquer tentativa pífia para justificar ou explicar este crime hediondo pense na barbárie que é ceifar uma vida em plena juventude simplesmente por ele não pensar da forma como seu pai/senhor/dono lhe permitia que pensasse. É a barbárie entre nós, infelizmente.

Eva Cordeiro é economista e professora universitária. Escreve todas as terças-feiras

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