Doações online nos EUA ajudam vítima de ataque a tiros e fazem as vezes de Estado
Em poucos dias, arrecadaram US$ 3 milhões (R$ 16 milhões), um exemplo de solidariedade
DIOGO BERCITO
WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Aiden McCarthy, um garoto de dois anos, perdeu os pais. Eles morreram no ataque a tiros em Highland Park, no estado de Illinois, durante as celebrações da independência americana.
Aidan vai crescer órfão, mas não está sozinho. Mais de 50 mil pessoas doaram dinheiro para sua família em uma campanha virtual. Em poucos dias, arrecadaram US$ 3 milhões (R$ 16 milhões), em um exemplo da excepcional solidariedade nos EUA, país em que as pessoas doam fortunas para ajudar desconhecidos –a maior quantia no caso de Aiden foi, por enquanto, de US$ 18 mil (R$ 95 mil).
Os milhões arrecadados são o preço que o país tem de pagar porque o Congresso –à revelia da vontade da maioria da população– se nega a dificultar o acesso a armas, viabilizando tiroteios como o desta semana. Além dos pais de Aiden, cinco outras pessoas morreram na cidade nos arredores de Chicago.
A família fez a vaquinha no site GoFundMe (me financie, em inglês). A empresa, criada em 2010, diz ter recebido mais de 200 milhões de doações em sua história, totalizando US$ 15 bilhões (R$ 80 bilhões). Foi também nesse site que 120 mil americanos doaram US$ 8 milhões (R$ 43 milhões) para as vítimas do tiroteio na boate Pulse, em Orlando, que matou 49 em 2016.
Mas as campanhas vão além de tentar mitigar a proliferação de armas e a violência urbana. São comuns também as vaquinhas para pagar os custos de estudo superior. Um ano em uma universidade de elite como Harvard custa cerca de US$ 80 mil (R$ 423 mil). A dívida de estudantes marca hoje o recorde de US$ 1,7 trilhão (R$ 9 trilhões). É a segunda maior, atrás das hipotecas.
Um terço das arrecadações por meio do GoFundMe foi para pagar tratamento médico e outros gastos causados por enfermidades. Os Estados Unidos não têm um sistema de saúde público universal, e as contas de hospitais, visitas e medicamentos podem levar à falência. É mais um caso de um Estado tão enxuto que, às vezes, acaba transferindo suas obrigações aos cidadãos.
A maior parte dos americanos tem plano de saúde via empregador, não via governo. Leighton Ku, diretor do Centro de Pesquisa de Políticas de Saúde da Universidade George Washington, lembra que o país tem programas públicos robustos para auxiliar quem não possui convênio, como o Medicare (para idosos e alguns casos de deficiência) e o Medicaid (para quem tem baixa renda).
“Mas às vezes esses programas podem ser lentos demais e às vezes as pessoas não cumprem todos os requisitos e ficam desamparadas. É aí que coisas como o GoFundMe entram em cena. Queria que nós fizéssemos mais, mas é importante ter essas ferramentas para preencher lacunas.”
O problema é que nem todas as lacunas são preenchidas. Para usar uma plataforma do tipo, as pessoas precisam ter acesso à internet e saber manejá-la. “Não é uma solução sistêmica”, diz Susan Cahn, do NORC (centro de pesquisa de opinião nacional, afiliado à Universidade de Chicago). “Americanos estão dispostos a ajudar quando o sistema de saúde não é acessível. Existe uma vontade e um costume, mas as pessoas também enxergam esse problema como uma questão que cabe ao governo resolver.”
De acordo com uma pesquisa feita pelo NORC em dezembro de 2020, quase um quinto dos lares americanos doou para campanhas de arrecadação para custos médicos durante aquele ano. O estudo também mostra que quase 60% dos entrevistados afirmam acreditar que o governo tem uma “enorme” ou “grande” responsabilidade de prover assistência médica barata ou gratuita a quem não pode pagar.
Como o sistema de saúde, o acesso a plataformas como o GoFundMe não é igualitário. “Pessoas com uma maior presença nas redes sociais têm mais chance de atrair atenção para as suas campanhas”, afirma a pesquisadora Mollie Hertel, que assina os estudos com Cahn.
Quem vive em áreas de mais baixa renda tende a arrecadar menos na internet também. De modo que, sugere Cahn, as campanhas virtuais são importantes e ajudam algumas pessoas em necessidade –mas elas também podem acabar exacerbando as desigualdades na saúde pública em vez de solucioná-las.