Idosa com Alzheimer deixa desejo escrito em guarda-roupa em MS
Espanhola, ela se mudou para o Brasil para fugir da guerra civil
STEFHANIE PIOVEZAN, SP – “Família e amigos, sou doadora total de órgãos. O pulmão não, fumei muitos anos. O fígado é virgem, nunca bebi. As córneas ok. O coração ok. Os rins ok. E tudo que puderem aproveitar. Obrigada.”
A mensagem acima foi deixada na porta de um guarda-roupa por Maria Pinilla Porta, 77, e encontrada pela neta da idosa, Sofia Espinosa Moura, 23, que compartilhou a notícia nas redes sociais.
“Minha avó sempre foi muito reservada e nunca falou desse desejo de ser doadora de órgãos. Foi uma surpresa”, diz a estudante de Mato Grosso do Sul.
Espanhola, Maria se mudou para o Brasil para fugir da guerra civil. Formada em economia, atuou como jornalista e assessora política em Curitiba e, nas palavras da neta, sempre foi uma pessoa à frente de seu tempo.
Há alguns anos, porém, sua memória começou a falhar. Maria pedia que informações do cotidiano, como endereços, fossem escritas no papel, e Sofia afirma desconfiar de que foi nessa época que ela escreveu o desejo descoberto agora.
Com o tempo, os esquecimentos aumentaram e, em agosto de 2021, Maria foi diagnosticada com Alzheimer. Ela foi morar na casa da filha e seu apartamento ficou fechado.
Recentemente, Sofia e a mãe voltaram ao imóvel para esvaziá-lo -a família vai alugar o local para complementar a renda e ajudar nas despesas com medicação, cuidadores e fisioterapia- e a jovem se deparou com o recado.
“Ficamos muito emocionadas porque, por trás do Alzheimer, a pessoa tem uma história que muitas vezes é esquecida pela família”, diz.
Sofia postou o recado da avó nas redes sociais e, embora alguns órgãos de Maria não sejam considerados para a doação devido à idade –há limites, como 55 anos para a doação do coração–, a jovem acredita que a mensagem pode incentivar doadores.
Em 2019, o Brasil atingiu o recorde de 380 transplantes cardíacos, mas com a pandemia o número caiu e, no ano passado, foram 356 -menos da metade do necessário.
Parte do problema, segundo a ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), está na recusa das famílias em aceitar a captação de órgãos. A média de negativas no país é de 49%, o triplo da registrada em outros países.
“Às vezes, a pessoa ouviu falar da importância da doação, mas não sabe que tem de comunicar esse desejo à família”, afirma a jovem.
Maria, que hoje guarda apenas a figura da filha na memória, fez isso a tempo.