Sobre viajar e voltar para casa

Vida e viagem podem ser sentidas de forma melancólica, com tristeza, pois o que é já foi e nós caminhamos para o fim

Pedro Fernando Sahium Pedro Fernando Sahium -
Sobre viajar e voltar para casa
(Foto: Arquivo Pessoal)

Gosto de viajar. Ultimamente as viagens que faço são de motocicleta. De moto eu me sinto misturado na paisagem, faço parte do ambiente. Quando estou de carro a minha percepção muda, parece que estou assentado diante de telas. A tela da frente, do para-brisa, se apresenta como uma moldura do que está lá fora. No enquadramento do vidro da frente as paisagens deslizam, mostrando “algo externo”, e eu “aqui dentro”, com o ar condicionado ligado, não sinto a temperatura e nem os cheiros externos.

De moto não existe “lá fora” ou “aqui dentro”. Tudo está num mesmo planeta, numa “casa comum”, repleta de misturas, cheiros e sons.

Na recente viagem que fiz para o Mato Grosso, num dado momento, duas araras gigantes me acompanharam por algum tempo sobrevoando lentamente acima da minha cabeça. O voo delas era suave. Ouvi o grasnado bem perto de mim, eu estava só um pouco abaixo delas. Quando tomaram direção contrária as vi distanciarem e ainda senti aquela presença colorida, e vi a plumagem azul e amarela e os movimentos ritmados do bater de asas permanecerem presentes comigo, quando já não estavam mais.

Preste atenção: Victor Hugo, romancista e poeta do século XIX, escreveu maravilhosamente sobre o viajar. No percurso de uma viagem realizada por Jean Valjean, personagem central do livro “Os miseráveis”, Victor Hugo disse:

“[Jean Valjean] via passar as árvores, os tetos de colmo, os campos cultivados, as mudanças da paisagem que se desloca em cada curva do caminho. Esta é uma contemplação que às vezes basta à alma, e quase a dispensa de pensar. Ver mil objetos pela primeira vez e pela última vez, o que pode haver de mais melancólico e mais profundo? Viajar é nascer e morrer a cada instante. Talvez, nas mais vagas regiões de seu espírito, ele (Jean Valjean) fizesse paralelos entre aqueles horizontes cambiantes e a existência humana. Todas as coisas desta vida fogem continuamente diante de nós. As sombras e os clarões entremeiam-se. Após o ofuscar, um eclipse; olhamos, nos apressamos, estendemos as mãos para agarrar o que passa; cada acontecimento é uma mudança de caminho; e, de repente, estamos velhos. Sentimos como um abalo (…)”.

O paralelo entre a vida e uma viagem é chocante, é de tocar o coração. Vida e viagem podem ser sentidas de forma melancólica, com tristeza, pois o que é já foi e nós caminhamos para o fim. O tempo parece um monstro implacável. Mas, por outro lado, me lembrei de um sentimento que sempre surge ao final das minhas viagens, um sentimento suave, às vezes silencioso, e que me era desconhecido até então, mas que eu detectei depois da seguinte pergunta: “Por que a volta para casa está prenhe de paz e alegria? “Por que tantos símbolos de beleza e gratidão brotam no meu coração no trajeto de retorno?”.

Talvez, voltar para casa seja um símbolo que alimenta a alma humana, do tipo dos símbolos religiosos que nos falam por meio de sentimentos que acolhemos e que nos dão a certeza de pertencer a algo maior, misterioso, mas acolhedor.

Talvez algo parecido com o que encheu de esperança o coração do filho pródigo da parábola de Jesus, ou seja, ele sabia que existia uma casa, um lugar seguro, acolhedor, honesto. Enfim, lá existia um pai, que mesmo não o tratando como filho lhe proporcionaria o melhor lugar para se estar na vida.

Voltar para casa, é experimentar um tempo que não é o da simples sucessão dos fatos, não é o Kronos, titã conhecido pela inevitabilidade, que a tudo devora e envelhece, e cujos instrumentos estão à vista: o calendário e o relógio. Voltar para casa faz parte de outro tempo, que só pode ser medido qualitativamente. Tempo significativo que não se mede por esses instrumentos mecânicos (insensíveis invenções humanas).

No trajeto e no tempo qualitativo de voltar para casa, experimentei, como aperitivo, a alegria de um dia que inexoravelmente há de chegar. E eu, mesmo sem os trajes de viagem, o macacão, o capacete e luvas, poderei confirmar as proféticas palavras poéticas de T.S. Eliot: “E no final de toda a nossa jornada chegaremos ao lugar de onde partimos e pela primeira vez reconheceremos o local”.

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