Desenvolvedoras trans brasileiras chegam ao topo com game Unsighted

Inspirado nas franquias The Legend of Zelda, Metroid, Castlevania e Dark Souls, o jogo Unsighted tem uma trama que abraça temas como ecologia, diversidade e tecnologia

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Desenvolvedoras trans brasileiras chegam ao topo com game Unsighted
Fernanda Dias (esq.) e Tiani Pixel, fundadoras do Studio Pixel Punk e desenvolvedoras do game Unsighted – Bruno Santos/Folhapress

(FOLHAPRESS) – Um pequeno estúdio de games brasileiro, formado por duas mulheres trans, conseguiu bater de frente com as gigantes americanas, chineses e japonesas que dominam o setor.

Inspirado nas franquias The Legend of Zelda, Metroid, Castlevania e Dark Souls, o jogo Unsighted narra um mundo em que o principal recurso não renovável está se esgotando, e a salvação depende de uma androide negra.

O game foi desenvolvido por Fernanda Dias, 30, e Tiani Pixel, 26, que formam o Studio Pixel Punk. A dupla conseguiu o feito de ter um jogo no seleto rol dos brasileiros que alcançam destaque internacional.

Em uma indústria que bombardeia os consumidores o tempo todo com o que há de mais avançado e caro na computação gráfica, Unsighted pisa no freio e integra a onda de games que provam que baixo orçamento e experiências menos realistas não impedem a realização de um título de qualidade.

O jogo, que começou como um protótipo apresentado no BIG Festival 2018, evento brasileiro anual com foco em games indie, levou três anos e meio para ser desenvolvido e lançado comercialmente pela publisher (distribuidora) americana Humble Games, em setembro de 2021.

A trama de Unsighted, que abraça temas como ecologia, diversidade e tecnologia, se passa num futuro quase inabitável em que a queda de um meteoro contendo a substância “anima” expulsa de vez os humanos e dá consciência aos autômatos.

A descoberta dessa utilidade da “anima” faz os homens retornarem e entrarem em guerra contra os agora sencientes androides, para quem a escassez da substância não significa a morte, mas a transformação em unsighted (“sem visão” ou “oculto”, na tradução para o português) -uma versão violenta deles mesmos.

Com uma jogabilidade que mistura diversas mecânicas de clássicos dos videogames, o que faz Unsighted se destacar é a sensação de urgência que transmite. Como a substância “anima” está se esgotando, todos os autônomos têm um prazo de validade, inclusive a protagonista, Alma.

O jogo impõe um limite de tempo para ser concluído, que até pode ser desativado no menu de opções, mas que dá ao jogo um ritmo de fim do mundo, e ainda faz o jogador precisar escolher bem se quer salvar certos personagens em detrimento de outros.

“Unsighted pega muito dessas fórmulas de jogos com os quais o jogador tem familiaridade e tenta fazer um twist em cima disso”, explica Fernanda.

Fernanda e Tiani chamaram a atenção das empresas que financiam e distribuem games ao apresentarem, durante o BIG Festival, uma versão de Unsighted ainda longe de estar pronta, mas nem por isso incompleta.

Como é corriqueiro na indústria do entretenimento, os estúdios conseguem financiamento para produzir suas obras após apresentarem uma amostra do que será feito ao longo da produção. No cinema, isso é feito com curtas-metragens. Nos videogames, um protótipo ou uma demo.

O diferencial do Studio Pixel Punk foi ter pensado no protótipo de Unsighted como um recorte vertical do jogo, isto é, em que fossem apresentadas suas principais características gráficas e de jogabilidade, mas sem deixar de lado detalhes menores, como menus, diálogos e personalizações.

“A gente sabia que para impressionar uma publisher precisava mostrar que sabia lidar com todos os passos do desenvolvimento, desde desenvolver uma gameplay legal até um menu de opções”, afirma Tiani.

“Às vezes parece que são coisas bestas -muita gente deixa para a última hora-, mas a publisher sabe que isso é importante, e que para o jogo dar certo isso tudo tem que estar implementado o mais cedo possível. A gente queria mostrar essa profissionalização, que foi algo que aprendi nos trabalhos que fiz antes”, completa a designer de games.
Num país em que a maior parte dos gamers joga pelo celular, antes de se dedicar exclusivamente ao Unsighted, Tiani aperfeiçoava suas habilidades em programação com trabalhos pontuais para empresas brasileiras do ramo.

Recém-egressa da faculdade de jogos digitais, e tendo vivenciado a cultura dos modders (pessoas que modificam softwares) e desenvolvedores nos anos 2000, ela decidiu guardar dinheiro para trabalhar em um projeto autoral no qual realmente acreditasse.

Foi durante a pré-produção do game que Tiani conheceu Fernanda, que havia estudado piano na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e desejava aplicar seu conhecimento de música à produção de videogames. A parceria aconteceu e Dias acabou se tornando a responsável por criar as baladas retrofuturistas que embalam Unsighted.

Após dezenas de publishers tanto brasileiras quanto estrangeiras entrarem em contato com o estúdio, as duas decidiram fechar com a americana Humble Games. A empresa, antes de começar a publicar produções independentes em 2017, era conhecida pela venda filantrópica de jogos sob o sistema “pague quanto quiser”, em que o usuário escolhia o preço que desejava pagar por um pacote de títulos selecionados.

“Tem muita gente que cai no erro de assinar com a primeira publisher que aparece, mas a gente não fez isso. Foi uma cautela que tivemos de analisar diferentes propostas e conseguir saber o que esperar de uma proposta desse tipo, do tipo de coisa que a gente pode pedir e negociar”, explica Fernanda.

A forte presença de games mobile no país ainda fez o Studio Pixel Punk cogitar lançar Unsighted para celulares, mas a entrada do investimento em dólares e a certeza de que o jogo seria disponibilizado em consoles permitiram uma produção mais ambiciosa.

O investimento feito pela publisher, cuja quantia não foi informada, foi, segundo elas, apenas uma pequena fração do que estúdios de países ricos recebem. Distribuidoras menores acabam se interessando por jogos feitos em países como Brasil e Índia por conta do baixo custo e da facilidade do retorno do capital.

Isso não impediu, no entanto, que Unsighted fosse considerado um dos melhores jogos indies de 2021. Ou um dos melhores jogos e ponto final.

Na lista de melhores do ano do site Polygon, um dos principais veículos dos EUA sobre games, Unsighted ficou em 10º lugar, à frente de títulos como Forza Horizon 5, Marvel’s Guardians of the Galaxy e Ratchet and Clank: Rift Apart, produzidos e distribuídos por algumas das maiores empresas do ramo.

Galeria Veja imagens do game brasileiro Unsighted, produzido pelo Studio Pixel Punk Jogo lançado em 2021 foi considerado um dos melhores do ano pela crítica https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1731852620765798-veja-cenas-do-game-brasileiro-unsighted-produzido-pelo-studio-pixel-punk * A desigualdade de recursos se reflete não só no custeio do desenvolvimento do game, como também na própria estrutura de marketing e distribuição dos jogos. Por exemplo, enquanto um fenômeno indie americano como Hollow Knight, lançado em 2017, tem quase 200 mil avaliações na Steam, loja virtual da Valve, Unsighted tem cerca de 650.

O que ajudou na popularização do game foi seu lançamento sem custo adicional no Xbox Game Pass, serviço de assinaturas de jogos da Microsoft, plataforma em que Unsighted foi mais jogado (o game também está disponível para Nintendo Switch e PS4).

Hoje morando juntas em Santo André, as duas desenvolvedoras veem como positiva a incursão pelo desenvolvimento de jogos, mercado que movimentou US$ 180,3 bilhões em 2021.

O financiamento da publisher, o real desvalorizado e o sucesso comercial e de crítica do game fizeram com que elas pudessem dedicar os últimos quatro anos exclusivamente ao trabalho com videogames, um sonho de criança, e ainda garantir parte do futuro do estúdio que fundaram.

“Com o que ganhamos com o Unsighted a gente consegue confortavelmente fazer um protótipo para o nosso próximo jogo, fazer o pitching [proposta] dele para uma publisher e continuar nesse ciclo de desenvolvimento”, diz Fernanda.

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