Entenda de uma vez: “Doutor” não é pronome de tratamento

Carlos Henrique Carlos Henrique -
Entenda de uma vez: “Doutor” não é pronome de tratamento

Como não gosto de polêmica, decidi falar sobre um assunto que quase não gera discussão: Doutor como pronome de tratamento. É impressionante como o brasileiro é um ser diferenciado, alguns diriam que somos um povo intrigante. Nossa famosa síndrome de vira-lata nos ensina desde cedo a abaixar a cabeça para quem está acima. Criou-se então uma cultura de submissão, reforçada por um título acadêmico que aqui foi adotado como pronome de tratamento. Quem está acima, é sempre Doutor, seja policial, médico, político ou mesmo o dono da padaria.

Aprendemos desde cedo a almejar status. Dos mais simples aos mais eruditos, buscamos estudar para ser “dotô”! E aí, quando a maioria chega lá, adquire um grau de arrogância digno de vilão de novela. Existe até um ditado que diz que brasileiro não pode subir numa Gilette que já quer fazer discurso. Uma das situações mais emblemáticas é justamente a forma como muitos em uma posição hierárquica superior gostam de ser tratados. A grande maioria acha que merece ser tratada diferente por ter um determinado curso superior ou um cargo de chefia.

O professor Leandro Karnal, famoso palestrante brasileiro, costuma dizer que a melhor maneira de verificar a “decência” de uma pessoa é observar como ela trata os faxineiros. Porque tratar bem quem está acima é fácil! Todo interesseiro faz isso. Tratar bem quem está abaixo e não pode lhe oferecer nenhum benefício é um desafio que nos permite diferenciar pessoas boas de pessoas mesquinhas. E, infelizmente, vamos encontrar todo tipo de pessoa ao longo de nossa vida, estando a maioria na segunda classificação.

Como trabalho na área hospitalar não é raro ver profissionais exigirem ser tratados pela alcunha de Doutor, mesmo sem merecerem tal título. Já presenciei uma profissional gritando com um maqueiro porque este a chamou de senhora ao invés de doutora. Ela deu um show no corredor da unidade, que chegou a assustar os plantonistas. Chegamos a pensar que ela estava sendo agredida. Mas, feliz ou infelizmente, era apenas uma adulta mimada. É absurdo esse tipo de realidade em que alguns diplomas tornam o dono melhor que outras pessoas. Principalmente, pessoas que podem não ter tido as mesmas oportunidades.

O fato é que tal título tem sido usado apenas para manter um status, não merecido, diga-se de passagem, por muitos profissionais. Sempre bom ressaltar, que o profissional competente não precisa de um título ou pronome específico para ser “respeitado”, seu trabalho o fará merecer esse respeito naturalmente. Alguns não entendem que o “dr” na frente do nome não vai mudar quem você é de verdade, e que você não precisa dele, para demonstrar respeito, nem ser respeitado.

O mais triste é que nessa necessidade de autoafirmação eterna, até conselhos profissionais entram na onda, legitimando o desejo de ser chamado por um título acadêmico que não possui. Os Conselhos Federais de Fisioterapia e Enfermagem, por exemplo, baixaram resoluções dando direito aos profissionais neles registrados, de usarem o título de Doutores, mesmo sem doutorados. Ignorando solenemente a lei 9.394 de 1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação Nacional, além da portaria 2.264 de 1997 do MEC que estipula os requisitos para validação de títulos de pós-graduações strictu sensu, como o doutorado.

Outros profissionais, principalmente advogados, usam, para justificar o “merecimento” de tal título, uma Lei-Decreto, de 11 de Agosto de 1827. Isso mesmo, 1827. Da época do Brasil Império. E agora, tomo a liberdade de citar o Doutor (Com doutorado) Marco Antônio Ribeiro Tura, que falou sobre isso: “A Lei de 11 de agosto de 1827, responsável pela criação dos cursos jurídicos no Brasil, em seu nono artigo diz com todas as letras: ‘Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos que devem formar-se, e só os que o obtiverem poderão ser escolhidos para Lentes’.”

Traduzindo o óbvio. A) Conclusão do curso de cinco anos: Bacharel. B) Cumprimento dos requisitos especificados nos Estatutos: Doutor. C) Obtenção do título de Doutor: candidatura a Lente (hoje Livre-Docente, pré-requisito para ser Professor Titular). Entendamos de vez: os Estatutos são das respectivas Faculdades de Direito existentes naqueles tempos (São Paulo, Olinda e Recife). A Ordem dos Advogados do Brasil só veio a existir com seus Estatutos (que não são acadêmicos) nos anos trinta.”

Antes que questionem a autoridade do Doutor Tura, ele é Membro vitalício do Ministério Público da União. Doutor em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público e Ciência Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Visitante da Universidade de São Paulo. Ex-presidente da Associação Americana de Juristas, ex-titular do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-titular da Comissão de Reforma do Poder Judiciário da Ordem dos Advogados do Brasil.

Na Procuradoria em que ele trabalha, “Doutor é só quem tem título acadêmico. Lá está estampado na parede para todos verem. E não teve ninguém que reclamasse“; porque, aliás, foi a própria Ordem dos Advogados do Brasil quem assim determinou, conforme as decisões seguintes do Tribunal de Ética e Disciplina: Processos: E-3.652/2008; E-3.221/2005; E-2.573/02; E-2067/99; E-1.815/98.

Em resumo, dizem as decisões acima: “não pode e não deve exigir o tratamento de Doutor ou apresentar-se como tal aquele que não possua titulação acadêmica para tanto.” Ficou claro? Então, vamos aprender um pouco mais: os membros da Magistratura e do Ministério Público são tratados por Excelência. Senhoria, é o tratamento adequado para Os delegados e advogados, públicos e privados. E bacharel, é bacharel! Caso encerrado.

Pra finalizar deixo aqui a instrução contida no Manual de Redação da Presidência da República, publicado em 2002, que diz: “Acrescente-se que doutor não é forma de tratamento, e sim título acadêmico. Evite usá-lo indiscriminadamente. Como regra geral, empregue-o apenas em comunicações dirigidas a pessoas que tenham tal grau por terem concluído curso universitário de doutorado.” E conclui que o tratamento por senhor é suficiente nessas situações.

Como psicólogo digo que o título de doutor (como pronome de tratamento) só tem uma função: massagear o nosso ego. Ser tratado por doutor nos confere um grau de importância, aparentemente, maior. Porém, é apenas isso. Se alguém me chamar de senhor, ao invés de doutor, estará sendo educado da mesma maneira, e sem se colocar abaixo de mim.

Não é uma formação que te faz melhor que alguém. Você pode até ter certa importância em determinado contexto, mas fora dele é apenas mais um e não merece ser tratado por doutor por causa disso. Trabalho com diversos médicos, e nunca vi nenhum, por maior que fosse seu cargo, exigir ser tratado por doutor. Pelo menos, não de minha parte!

Portanto, fique tranquilo! Você não é obrigado a chamar ninguém de doutor. Esse é um costume cultural perpetuado por pessoas que precisam se autoafirmar através de seus cargos. O pronome certo para bacharéis é “senhor”, sejam eles em medicina, direito, psicologia, fisioterapia ou enfermagem. “Senhor” é pronome de tratamento. “Doutor”, não!

Bruno Rodrigues Ferreira é jornalista, psicólogo, especialista em Tecnologia e Educação e Gestão em Saúde. Siga-o no Twitter: @ferreirabrod

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