Aposentada caminha quase todos os dias à procura de irmão em Petrópolis
"Meu coração não está me dizendo que está morto, não. Mas não sei se sou eu tentando me enganar", afirma a aposentada
JÚLIA BARBON
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há aproximadamente um mês, Maria das Graças sai quase todos os dias caminhando pelas ruas de Petrópolis, no Rio de Janeiro, com o rosto de Antônio Carlos estampado numa folha sulfite que mandou imprimir. “Meu coração não me diz que ele está morto”, diz a aposentada de 61 anos, cansada.
Na última quarta (9), ela partiu pela manhã e só voltou no fim da tarde, andando sem rumo. “Tenho que estar lá no Sagrado ao meio-dia e meio”, ouviu do irmão mais novo na última vez em que o viu, numa visita rápida que ele fez antes de ir à paróquia.
Horas depois, a maior chuva em 90 anos cairia sobre a cidade, fazendo morros deslizarem e matando ao menos 233 pessoas, incluindo 44 crianças e adolescentes. Quase um mês depois, Antônio Carlos dos Santos, 56, ainda é uma das quatro pessoas desaparecidas, segundo a Polícia Civil.
“Nós éramos muito chegados”, conta Graça, que vivia acompanhando o irmão no médico para tentar conseguir sua aposentadoria. Ele costumava fazer biscates, capinava, limpava vidros, mas segundo ela tinha um tipo de transtorno mental e tomava remédios.
“Nesse dia que ele sumiu parecia que estava bem, mas, por isso, que eu tô achando que… Meu coração não está me dizendo que está morto, não. Só se ele estiver na casa de alguém. Mas não sei se sou eu tentando me enganar”, repete a si mesma.
Desde aquele dia, ela pega o cartaz e vai entregando em bares, restaurantes e nas mãos de quem passa, na esperança de um telefonema. “Estou tentando viver porque os outros me falam para viver, porque enquanto estamos no escuro não dá. Tem que ter corpo, alguma coisa”, pede ela.
Os outros irmãos foram ainda ao IML (Instituto Médico-Legal), perguntaram em hospitais e colheram amostras de DNA. Também olharam minuciosamente, porém não viram nada no vídeo dos dois ônibus carregados por uma enxurrada para dentro do rio Quitandinha.
É nas margens dele que 3 das 4 famílias têm se encontrado quase diariamente desde a tragédia. Além de Antônio Carlos, as buscas ali continuam pelo menino Pedro Henrique Braga Gomes da Silva, 8, e por Heitor Carlos dos Santos, 61.
A criança voltava do primeiro dia de aula na tarde daquela terça (15) quando a água veio de uma vez, com força, virando o veículo. Uma sobrevivente que se agarrou a uma árvore até tentou segurar o garoto, bem miúdo, mas só conseguiu salvar a mãe.
A mãe agora diz que não quer mais viver, tentando controlar a depressão com remédios e lidando com convulsões e falhas na memória. A família ainda teve que lidar com um acidente caseiro que, três dias depois da catástrofe, queimou o rosto da avó do menino, agora em recuperação.
“Minha vida parou”, diz a tia-avó Tereza Coutinho, 53, que deixou marido, filhos e o salário de diarista em Juiz de Fora (MG) há semanas para procurar Pedro Henrique no curso do rio. “Enquanto eu não conseguir nada, não vou sair daqui.”
Ela reclama da demora no início das buscas naquele ponto pelos bombeiros -que primeiro se concentraram no Morro da Oficina, cenário de grande parte das mortes-, do desencontro de informações e do descarte de lama e entulhos, onde ela acha que poderia haver pistas.
“A cada dia que passa vai dando uma dor, uma tristeza, e a gente vai perdendo as esperanças. Principalmente por ser uma criança. Os adultos já foram encontrados em muita decomposição, imagina ele”, diz. “Fica aquele ponto de interrogação na nossa cabeça.”
O marceneiro Leandro da Rocha, 48, virou um símbolo dessa busca. Foi ele quem começou a varredura no rio pelo filho Gabriel, 17, junto a voluntários de diversas cidades. Voltou para buscar outros desaparecidos dois dias depois que o adolescente foi achado e enterrado.
O único recurso que eles têm é o olhar, ele diz. Com a ajuda de um bote doado, vão observando cada centímetro do curso de água, prestando a atenção em odores, moscas e urubus. Os bombeiros só se juntaram depois de alguns dias, após a imprensa divulgar o mutirão.
Leandro percorreu a margem com comandantes da Guarda Civil para mapear pontos de calmaria, barrancos de areia e galhadas onde os corpos podem estar agarrados. “A dor que essas pessoas estão sentindo, que eu senti ao procurar meu filho, eu peguei como missão. Vou até o fim para encontrar eles”, decidiu.
Agora ele cobra mais ajuda oficial e pensa até em ir às Forças Armadas pedir o auxílio de soldados da região. À medida que os mortos foram sendo encontrados e a rotina foi voltando na cidade, o efetivo dos bombeiros caiu de 500 (além de 155 de outros estados) para 80.
Eles comparam imagens de drones de antes e depois da tragédia para saber para onde enviar equipes, cães ou máquinas. “A corporação segue trabalhando 24 horas por dia em busca das vítimas”, afirma o órgão, que não apontou um representante para conversar com a reportagem.
Continuam procurando também por “seu Heitor”, autônomo aposentado que morava com a mãe em Petrópolis e voltava do centro naquele dia. Ele ligou por volta das 16h50 para dizer que estava no ônibus esperando a água baixar, já que era comum o rio transbordar com a chuva, mas depois desapareceu.
“A sociedade petropolitana precisa entender que nenhuma família quer dinheiro. Queremos apoio, imagens das câmeras [que a empresa Petro Ita diz terem sido perdidas] para saber quantos estavam ali, porque não sabemos se todos foram encontrados. Só queremos nossos parentes para enterrar”, diz a sobrinha e professora Jaqueline Noronha, 38.
A quarta pessoa oficialmente desaparecida é Lucas Rufino da Silva, 20, levado pela lama no Morro da Oficina junto à irmã e à mãe. Na época, a família disse à imprensa que retirou o corpo dos escombros, mas que ele nunca chegou ao IML. A Polícia Civil afirma que pode ter sido um mal-entendido com outro jovem parecido, porém o tio que o viu nega.
Ao menos uma outra família que não consta na lista aguarda por notícias. É a mãe adotiva de Maria Vitória Barbosa Castilho, 26, que se desentendeu com os parentes no Rio de Janeiro há meses e foi morar em Petrópolis como empregada doméstica.
As irmãs puseram seu nome numa página de desaparecidos nas redes sociais, entretanto até agora não tiveram resposta. “Vamos quando dá, para ver se alguém localizou. Se você sabe que faleceu, recolhe o corpo e enterra. Mas quando não sabe de nada, a gente fica vazia”, diz Maria de Fátima Castilho, 66.
Pensando nesses que ainda não conseguiram seguir em frente, o marceneiro Leandro pretende fundar uma instituição com o nome do filho, Gabriel da Rocha, com cursos de prevenção, primeiros socorros e resgate. “Nasci de novo, minha missão agora é essa”, promete.
Ainda andando com o cartaz do irmão, Maria das Graças entende a força: “Todo mundo fica tirando minha esperança, mas eu ainda tenho. De encontrar ele, vivo ou morto”.