Ex-campeão de xadrez punido por apoiar guerra teve ajuda de espiões soviéticos em Mundial
Anatoli Karpov não pode mais entrar na União Europeia nem movimentar ativos em países-membros do grupo
UIRÁ MACHADO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Anatoli Karpov, 70, um dos maiores jogadores de xadrez de todos os tempos, está na lista dos 351 parlamentares da Rússia que sofreram sanções pelo apoio à guerra na Ucrânia. Ele não pode mais entrar na União Europeia nem movimentar ativos em países-membros do grupo.
Ex-campeão mundial, Karpov destoa de boa parte dos enxadristas nesse conflito. Alguns dos principais nomes da modalidade condenaram a invasão, e a Fide (Federação Internacional de Xadrez), historicamente alinhada a Moscou e comandada por um russo, reforçou o isolamento esportivo do país liderado por Vladimir Putin.
Karpov, em contrapartida, votou a favor da operação no país vizinho. Mas a atitude não surpreende porque, em 2014, deputado havia três anos, tinha apoiado a anexação da Crimeia.
E, mais ainda, porque Karpov sempre jogou perto do poder, oferecendo seu prestígio para as autoridades e recebendo, em troca, vantagens como a ajuda da KGB, a polícia secreta soviética, na disputa de três finais mundiais.
Nascido em Zlatoust, um polo industrial da antiga União Soviética, Karpov aprendeu a jogar por volta dos 4 ou 5 anos. Não demorou a se destacar nas competições infantis e a frequentar as melhores escolas de xadrez num país orgulhoso de ser a maior potência do mundo no esporte.
Em 1969, sagrou-se campeão mundial juvenil e fez brilhar os olhos da cúpula do Partido Comunista, que viu em Karpov o homem certo para perpetuar a hegemonia soviética.
Ele tinha não só a habilidade necessária mas também uma ótima história: era filho de um proletário, não alguém oriundo da elite, e sua ascendência era considerada pura pelo regime, por não ter origem judaica.
Karpov chegou ao topo do mundo em 1975, ganhando por desistência de Bobby Fischer, norte-americano que vencera Boris Spassky em 1972 e quebrara uma longa tradição. Desde 1948, o campeão mundial e o vice eram da União Soviética.
Assim como nas artes e na ciência, também no esporte o regime comunista procurava se afirmar sobre o Ocidente. Manter o título com Karpov era questão de Estado, e mais ainda quando, em 1978, ele encontrou pela frente Victor Kortchnoi, um jogador considerado inimigo do povo.
Kortchnoi tinha desertado da União Soviética dois anos antes e vivia na Suíça. Fugira de sua terra natal não por razões políticas, mas por querer seguir sua carreira sem precisar medir as palavras nem depender do Partido Comunista, que decidia quem viajava para torneios no exterior e, em muitos casos, até quem ia vencer.
O fato de Kortchnoi ter escapado por motivos pessoais não diminuiu a reação contra ele. Passou a ser pintado como traidor e teve seu nome suprimido do noticiário enxadrístico (era chamado de “oponente” ou “desafiante”).
No confronto de 1978, ambos os jogadores disputaram uma série de partidas nas Filipinas. Kortchnoi, então com 47 anos, chegou com três técnicos e uma assistente. Karpov, 20 anos mais jovem, levou uma delegação de quase 20 pessoas, entre as quais pelo menos sete agentes da KGB.
O chefe da delegação de Karpov era o coronel Viktor Baturisnky, que tinha sido promotor militar e auxiliar da repressão nos anos de Josef Stálin.
Os agentes da KGB cuidavam da segurança do favorito soviético e, segundo muitos relatos, espionavam os treinos de Kortchnoi para antecipar as jogadas. Afirma-se que até um agente duplo foi utilizado.
Além disso, preparavam o iogurte que Karpov comia durante as partidas e que parecia lhe providenciar doses extras de energia e concentração.
Mas nada supera o fato de que a família de Kortchnoi estava na União Soviética, impedida de deixar o país. A esposa não conseguia o visto, enquanto o filho, que se recusara a prestar serviço militar, viveu na clandestinidade por um tempo até que terminou atrás das grades.
Conta-se ainda que a delegação russa, recheada com alguns dos melhores enxadristas da época, ainda se comunicava secretamente com Moscou, onde mais duas equipes analisavam as partidas e passavam relatórios diários a Leonid Brejnev, então líder da União Soviética.
No livro “The KGB Plays Chess” (a KGB joga xadrez), o tenente-coronel Vladimir Popov, ex-agente da polícia secreta, afirma que o próprio Karpov era agente secreto e operava sob o codinome “Raul”.
Kortchnoi, além de tudo isso, sempre declarou temer por sua vida caso vencesse Karpov, e algumas testemunhas mais tarde confirmaram haver planos da KGB para matar o desertor caso ele se tornasse campeão – o que a agência negou.
Diante de tamanha pressão, Kortchnoi perdeu, mas não sem lutar: foi 6 a 5, sem contar 21 empates.
Três anos depois, Karpov precisou defender seu título de novo contra Kortchnoi, desta vez na Itália.
Sem querer passar por apuros, a União Soviética mandou uma delegação pelo menos três vezes maior que a anterior, com ainda mais agentes da KGB. A esposa de Kortchnoi continuava na União Soviética, seu filho estava na prisão e, segundo se soube, sofria maus-tratos.
Resultado: Karpov ganhou com facilidade.
No ciclo seguinte, Karpov enfrentou seu compatriota Garry Kasparov, no que se tornaria uma das maiores rivalidades de todos os esportes.
Kasparov, que nunca se conformou com o regime soviético, enfrentou todo o aparato de espionagem da KGB em uma longuíssima série de partidas. Ainda assim, 12 anos mais jovem, venceu Karpov em 1985 e manteve o título até 2000.
Karpov ainda voltaria se tornar campeão do mundo de 1993 a 1999, num Mundial paralelo reconhecido pela Fide, mas sem o mesmo peso do troféu que ficou com Kasparov.
Fora dos tabuleiros, Karpov é descrito como uma pessoa gentil até por seus adversários. Em 2007, quando Kasparov foi preso por participar de atos anti-Putin, Karpov foi visitá-lo na detenção. Não conseguiram se ver, mas o antigo rival deixou de presente uma revista de xadrez.