‘Não vou morrer’, disse cantora gospel morta por bala perdida enquanto fazia café
Ela ajudava qualquer pessoa sem distinção de credo, idade ou afinidade. Não era raro tirar de si para dar aos outros. Das compras separava um sabão ou um feijão, e partilhava. Sua paixão era ser fiel a Deus
Julia Barbon,
do Rio de Janeiro (RJ) – Eunice passava um café na cozinha de casa por volta das 16h quando um projétil de arma de fogo atravessou seu pescoço, próximo à garganta, e se alojou em seu pulmão. “Meu Deus”, gritou depois de chegar na sala e antes de tombar do lado de fora da casa, nos braços da filha Rayane, paralisada pelo choque aos 23 anos de idade.
“Fica calma filha, não vou morrer não, eu tenho Jesus no coração”, teve tempo de pronunciar. No carro do vizinho já não falava mais, mas conservava a consciência balançando a cabeça. No hospital, os filhos aguardaram uma hora e meia pela notícia dos médicos. Não sangrou tanto por fora porque a hemorragia foi interna.
Eunice Veiga morreu aos 59 anos após ser atingida por uma bala perdida no bairro Amendoeira, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Era sábado (12) e naquela tarde ela conversava no Whatsapp com uma prima que chegou a avisar: “Se abaixa aí, deita aí”.
Não era a primeira vez que tinha que mudar de cômodo ou deitar no chão por causa de conflitos entre facções criminosas na região, que ultimamente vinham sendo diários, segundo o filho Davi, de 26 anos. Dessa vez ela disse à prima que só terminaria de fazer o café e depois sairia da cozinha. A última visualização no aplicativo foi às 16h08.
Apesar do relato do filho, a direção do Hospital Estadual Alberto Torres informou que Eunice já chegou morta na unidade, com um ferimento no tórax. Outras duas pessoas também foram baleadas naquele dia e chegaram a ficar internadas, mas já receberam alta: Antonio José Gomes de Souza, 40, e Gesse Soares dos Santos, 41.
A Polícia Militar disse que equipes do 7º batalhão (São Gonçalo) foram chamadas no final daquela tarde, quando ela já estava no hospital. A Delegacia de Homicídios da região foi acionada para investigar o caso, fez perícia na casa e colheu depoimentos dos familiares.
Eunice se foi sem ver terminada sua primeira música gospel gravada em estúdio, cuja primeira versão guardou num pendrive. Não era famosa, mas por onde andava espalhava música, desde muito nova. A última canção foi naquela mesma manhã no enterro de um tio, que morreu de causas naturais porque já era bem velhinho.
A fatalidade quase a fez desistir dos planos de ir, naquele final de tarde, à inauguração de um novo terreno da sua igreja, a batista Lagoinha de Niterói. Mas achou que o evento ia lhe fazer bem e, animada, mandou o filho comprar ingresso para lhe acompanhar. Também não deu tempo de ir.
Eunice ajudava qualquer pessoa sem distinção de credo, idade ou afinidade. Não era raro tirar de si para dar aos outros. Das compras separava um sabão ou um feijão, e partilhava. Sua paixão era ser fiel a Deus, diz Davi: “Ela sempre nos levou para a igreja, fez com que fôssemos pessoas do bem pra sociedade, foi o legado que ela deixou”.
Foi assim que levou a vida depois que se aposentou das cozinhas de duas escolas de São Gonçalo. As décadas como merendeira foram interrompidas por uma hérnia de disco que comprimiu seus nervos e tornou o andar mais difícil.
Além de Deus, dedicava a vida aos cinco filhos, de 39 a 23 anos, e aos seis netos. “Pode deixar que quando eu for para a rua levarei sombrinha e casaco, tá bem? As marmitas e roupas que a senhora passava e fazia, eu aprendi! Os ensinamentos? Eu aprendi também. Seu legado na Terra não será esquecido”, escreveu Davi nas redes sociais.