Juíza da dura lição em estudante que humilhou colega por ele ser negro

Após crime virtual ter grande repercussão, garoto é condenado a indenizar à vítima além de uma série de castigos

Folhapress Folhapress -
Juíza da dura lição em estudante que humilhou colega por ele ser negro

A Justiça de São Paulo condenou o ex-estudante da FGV (Fundação Getulio Vargas) Gustavo Metropolo por racismo e injúria raciais cometidos contra um então colega de faculdade em 2018.

A decisão foi comemorada por membros de movimentos negros por trazer condenação dupla, por racismo e e injúria racial, em um crime virtual que teve grande repercussão.

A juíza Paloma Carvalho, da 14ª Vara Criminal, acatou entendimento de que a ofensa realizada feriu não somente a honra individual da vítima, mas a coletividade das pessoas negras, configurando assim também o crime de racismo.

“Nota-se que a conduta do réu se dirigiu tanto à coletividade quanto à vítima. Isso porque, no contexto em que publicada (grupo de amigos), dentro de uma instituição renomada e voltada a classes abastadas da sociedade, observa-se a intenção de segregar um aluno preto, que não ‘poderia pertencer’ àquele mundo. Além disso, ao dizer que encontrou um ‘escravo’, o acusado objetifica a vítima, dando a entender que ela só poderia estar naquele local acompanhada de seu ‘dono'”, afirma a juíza na sentença.

“Nesse contexto, com a postagem, o autor diminuiu e ofendeu toda a coletividade de pessoas pretas, principalmente as que frequentavam a faculdade à época dos fatos”, conclui.

A tese havia sido apresentada pelo Ministério Público e pela defesa de João Gilberto Lima, o estudante de administração pública alvo das ofensas racistas. Em 2018, quando estava no segundo semestre do curso, ele foi fotografado ao lado de duas alunas brancas e teve sua foto publicada em grupos de WhatsApp com a legenda

“Achei um escravo no fumódromo! Quem for o dono avisa!”.

De acordo com a sentença, quando questionado à época por professores, Metropolo admitiu ter sido o autor da foto e da legenda. Durante o processo, porém, ele negou a versão inicial e disse que seu celular tinha sido roubado.

A juíza afirmou na sentença que as alegações da defesa não condiziam com o restante das provas e condenou Metropolo a 2 anos e 4 meses de reclusão, pena convertida em serviços comunitários, e 23 dias-multa, no valor de meio salário mínimo cada. Ele também foi condenado a pagar cinco salários mínimos para a vítima.

A decisão de pedir a condenação do agressor tanto pelo crime de injúria racial quanto pelo de racismo fez parte de uma estratégia para alcançar reivindicação histórica do movimento negro: a de que ofensas racistas interpessoais sejam consideradas crime de racismo.

“Normalmente, a gente tem a desclassificação do crime de racismo para injúria racial, que não é um crime imprescritível, inafiançável, e que tem penas mais brandas”, diz o advogado Daniel Teixeira, do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), que representou Lima.

Para evitar essa interpretação, a defesa usou o recurso do concurso formal, segundo o qual um mesmo ato pode incorrer em dois ou mais crimes. Com isso, eles esperam consolidar uma jurisprudência. “Assim, não precisa haver a discussão de se é injúria ou é racismo. Podem ser os dois”, afirma Teixeira.

A pesquisadora Denise Carvalho, que analisou boletins de ocorrência da Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância) sobre crimes raciais entre 2013 e 2017 para seu doutorado em sociologia pela USP, afirma que o entendimento de que o mesmo ato pode configurar injúria e também racismo é novo.

Ela diz que a injúria racial, apesar de ser direcionada a um indivíduo, também é motivada pelo racismo. “Muitas vezes a pessoa é animalizada, desumanizada, objetificada. E nem sempre é fácil identificar o crime de racismo, enquanto ofensa para uma comunidade inteira, é considerado difuso. Então é interessante que nesse caso tenha havido essa percepção judicial”, diz.

O professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Samuel Vida, explica que a criação do tipo penal de injúria racial surgiu no final dos anos 1990 justamente para tentar diminuir o esvaziamento jurídico que a lei que tipificou o racismo como grave vinha sofrendo.

“Depois de aprovada a lei, os juízes começaram a considerar que no incidente de racismo, que é mais comum, aquele em que cidadãos são ofendidos em tom pessoal, não seria racismo, mas injúria, apesar de essa alegação não ter respaldo na legislação”, diz.

Por isso, o movimento negro pressionou por uma qualificação do crime de injúria. Hoje, o caminho é o contrário.

“Uma coisa é admitir que o racismo se expressa por varias formas e, por isso, podem ser tipificadas de várias maneiras, sendo a injúria racial um racismo específico. O que não é admissível é tratar isso com a menor intensidade punitiva que a injúria prevê”, afirma Vida.

A discussão chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal) e, em 2020, os ministros iniciaram julgamento em plenário sobre a equiparação dos dois crimes.

O ministro Edson Fachin votou a favor do entendimento de que a injúria racial também não está sujeita a prazos de prescrição. O ministro Kássio Nunes Marques votou de forma contrária. Após a divergência, o julgamento foi suspenso a pedido do ministro Alexandre de Moraes, que pediu mais tempo para analisar o caso.

O tema também está no Legislativo. Em novembro de 2020, o senador Paulo Paim (PT-RS) apresentou projeto de lei para equiparar os dois crimes. O mesmo parlamentar, quando era deputado, foi o responsável pela qualificação do crime de injúria no caso de ofensas racistas.

A decisão no caso da FGV foi comemorada pelos alunos do Coletivo 20 de Novembro, que reúne estudantes negros da faculdade. Segundo Thaynah Gutierrez, aluna do oitavo semestre de administração pública, o grupo ficou feliz com a condenação dupla.

“Para a gente, dá um alívio bem grande, porque várias microagressões continuam existindo, só que as pessoas não negras se tornam cada vez mais vigilantes sobre o que pode acontecer, né? Acho que isso traz um conforto maior para nós que somos estudantes negros, de que agora a gente não precisa mais ficar dizendo o que está certo ou errado, a gente quer só viver plenamente os espaços e ser respeitada”, diz.

Ana Paula Metropolo, mãe e advogada de Gustavo Metropolo, disse à reportagem ter recebido a decisão com serenidade e afirmou que a família vai recorrer.

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