Hábitos sem eficácia no combate a Covid persistem mesmo após evidências científicas

Ainda que ineficazes contra a doença, algumas medidas são elencadas pelos especialistas como boas práticas de higiene e prevenção de outras doenças.

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Hábitos sem eficácia no combate a Covid persistem mesmo após evidências científicas
Manter o hábito de higienizar com frequências as mãos, especialmente após tocar áreas de uso comum, pode prevenir outras doenças virais. (Foto: Reprodução)

A pandemia ainda não acabou, mas alguns hábitos adquiridos durante a crise sanitária já poderiam ter tido fim. Mesmo comprovadas cientificamente como ineficazes para impedir a transmissão do coronavírus, algumas medidas continuam sendo usadas em estabelecimentos comerciais e órgãos públicos.

Medição de temperatura, tapete sanitizante, substituição de cardápios físicos por QR Code se tornaram um legado de práticas que persistiram a 18 meses de pandemia e evidências científicas que mostraram sua ineficiência contra a Covid.

Na região central de São Paulo, por exemplo, em cinco supermercados visitados pela Folha todos mantêm totens com termômetros para controlar a entrada dos clientes. Funcionários disseram que nunca viram ninguém ser barrado de entrar nos estabelecimentos por estar com temperatura alta.

A medição de temperatura na entrada das escolas também é frequente, tanto nas particulares como nas públicas. As unidades colocam um ou dois funcionários especificamente para essa verificação.

“A ciência já comprovou que a medição de temperatura é completamente inócua para controlar a Covid. Além de não ser efetiva diante da forma como a doença se manifesta, a prática é completamente sem sentido da maneira como é feita, com equipamentos sem calibragem ou medição no pulso”, diz o infectologista Carlos Fortaleza, da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Ele explica que a medida é ineficaz, já que menos da metade das pessoas infectadas com Covid tiveram febre. Além de que o aumento da temperatura corporal costuma aparecer depois de outros sintomas da doença.

“É uma medida inútil e custosa para os estabelecimentos. Até mesmo por ser custosa, muitos lugares acabam usando equipamentos de baixa qualidade, que não têm calibragem confiável para verificar se a pessoa está mesmo com febre”, destaca a infectologista Raquel Stucchi, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Para os especialistas, outras medidas de menor custo são mais eficientes, como o preenchimento de questionários sobre sintomas em locais de frequência diária, como escritórios e escolas. Por esse instrumento, os frequentadores podem relatar outros sintomas mais comuns da doença, como cansaço, perda de olfato, dor de cabeça ou de garganta.

A aplicação dos questionários, no entanto, precisa ser monitorada para que as pessoas sintomáticas sejam encaminhadas para testagem ou isolamento.

Outras práticas já reconhecidamente ineficazes contra a Covid são o uso de tapetes sanitizantes ou a retirada dos sapatos na entrada de casa. Para os especialistas, a medida pode ser importante do ponto de vista higiênico, mas não para evitar o vírus.

O mesmo em relação a lavar as roupas com produtos especiais ou assim que chegar em casa ou ainda usar roupas com tecido vendido como “antiviral”.

“A transmissão do coronavírus é pelas gotículas que liberamos pelas vias respiratórias, ou seja, é pelo ar. A transmissão por superfícies, seja roupa ou sapato, é desprezível. O importante é higienizar as mãos para evitar o contato delas com a boca, nariz e olhos, que é por onde pode ocorrer o contágio”, diz Fortaleza.

Exatamente pelas evidências de que a chance de transmissão por superfícies é muito baixa, os especialistas também ressaltam que outras práticas defendidas no início da pandemia são pouco eficazes, como a higienização de embalagens e compras ou evitar tocar maçanetas e botões de elevador.

“No começo da pandemia, quando ainda tínhamos poucas informações sobre o comportamento do vírus, essas recomendações foram feitas. Hoje, sabemos que a contaminação por superfícies é desprezível”, diz Stucchi.

Por isso, trocar cardápios físicos de restaurantes por versões digitais que podem ser acessadas por QR Code não diminui o risco de transmissão nesses locais. Os especialistas dizem que as práticas mais eficientes nesses estabelecimentos são manter boa ventilação, mesas afastadas e orientar os clientes a só tirarem as máscaras quando estiverem comendo ou bebendo.

“Se a pessoa passa três horas em um ambiente fechado, sem máscara, falando, não é o ato de encostar no cardápio que vai ser o risco”, destaca Fortaleza.

Para os especialistas, adotar medidas ineficientes pode fazer com que as pessoas sintam uma falsa segurança e deixem colocar em práticas o que de fato pode protegê-las da transmissão, como o uso correto de máscara e manter o distanciamento.

Ainda que ineficazes contra a Covid, algumas medidas são elencadas pelos especialistas como boas práticas de higiene e prevenção de outras doenças. Por exemplo, manter o hábito de higienizar com frequências as mãos, especialmente após tocar áreas de uso comum, pode prevenir outras doenças virais.

Retirar os sapatos ao entrar em casa e higienizar embalagens de alimentos também são medidas vistas como boas práticas de higiene ainda que ineficazes na prevenção do coronavírus.

Claudio Maierovitch, médico sanitarista da Fiocruz, avalia que a falta de uma política e coordenação nacional para divulgar e incentivar o uso de medidas corretas contra a Covid é um dos fatores que disseminou hábitos sem eficácia.

“Desde o início, o presidente, que é uma das figuras com maior poder de comunicação, foi contrário ao uso de máscara. Deixar de usá-la se tornou um símbolo de que a situação está melhor, o que é uma armadilha.”

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sempre foi contrário ao uso de máscara. Inclusive, já foi multado em diversas cidades por não usá-la. Ele também continua em busca de formas para impedir que a proteção continue sendo obrigatória.

Outro alvo do presidente, a exigência do comprovante de vacinação também é apontada pelos especialistas como uma medida eficaz para controlar o vírus.

“A vacina nos levou ao estágio atual da pandemia, de arrefecimento. Exigir a comprovação é uma forma de fazer com que a população se vacine corretamente, volte para tomar a segunda dose. O governo federal tentar barrar o passaporte é mais uma demonstração do negacionismo que embasa suas ações”, diz Stucchi.

Apesar de defender a vacinação, o governador João Doria (PSDB) não exigiu que os estabelecimentos obriguem a comprovação da imunização e planeja retirar a obrigatoriedade do uso de máscara no estado. Na cidade de São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) determinou que a apresentação do comprovante só é obrigatória em eventos com público superior a 500 pessoas.

Para os especialistas, a medida poderia ser mais difundida, com a obrigatoriedade da comprovação em escolas, faculdades, escritórios e outros estabelecimentos comerciais. Por enquanto, a exigência tem sido adotada isoladamente por alguns órgão, como USP, Unicamp, Unesp e o Tribunal de Justiça de São Paulo.

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