Entenda como Caetano Veloso é o ateu convicto que faz música gospel
O artista lança neste domingo "Deus Cuida de Mim" em parceria com Kleber Lucas
Caetano Veloso não dava muita moral para Deus. Chegou a citar sua descrença numa música de 1985 cheia de referências a religiões afro-brasileiras, “Milagres de Deus”. “Quem é ateu e viu milagres como eu/ sabe que os deuses sem Deus/ não cessam de brotar, nem cansam de esperar”, ele cantava então.
Quem te viu ateu, quem te vê regravando agora um clássico do cancioneiro gospel brasileiro. O artista lança neste domingo “Deus Cuida de Mim” em parceria com Kleber Lucas, pastor evangélico e autor dessa letra que fala sobre a necessidade de “aprender mais de Deus, porque Ele é quem cuida de mim”.
A música gospel, ao contrário da valorização que tem nos Estados Unidos, sempre foi essa estranha no ninho fonográfico brasileiro. É como se vivesse num universo paralelo, com cifras milionárias e audiência polpuda, mas alcance pífio fora das bolhas religiosas. O próprio Kleber é um nome conhecidíssimo nas igrejas, mas provavelmente você, caro leitor, se não for evangélico, nunca ouviu falar dele.
Mas voltemos a Caetano. Então, ele falou sobre o lançamento no Fantástico, e o que ele pode dizer é que toda a deidade que enxotou de sua vida por décadas um belo dia apareceu para jantar.
“Eu acho que foi Deus”, respondeu quando perguntado sobre por que gravar o hino evangélico. “Realmente é a única coisa que eu posso responder. Eu não sou propriamente religioso. Fui criado em uma família católica com uma visão religiosa das coisas, mas depois me afastei muito. Você sabe, Kleber, que eu cheguei a ser assim antirreligioso. Na minha juventude, eu era antirreligioso, mas agora a única resposta que veio a minha cabeça da sua pergunta é ‘foi Deus’.”
Em 2011, ele declarou seu ateísmo a este jornal. Na mesma entrevista, falou sobre a origem cristã. Dona Canô, a matriarca, organizava novenas e não dormia sem antes rezar.
Em Salvador, um jovem Caetano se achegou ao candomblé. Até se iniciou como filho de Oxóssi na casa de Mãe Menininha, a poderosa mãe de santo. Mas não quis se aprofundar muito, como contou 11 anos atrás. “É o tal negócio de perder a consciência. Eu não queria entrar em transe. Ficava com medo.”
Também discorreu sobre a experiência de ter três filhos religiosos.
Moreno era um católico que “se o papa João 23 fosse santo, ele seria devoto”, fez graça à época. Os caçulas Tom e Zeca, evangélicos, frequentavam a Igreja Universal –hoje só Zeca continua indo, segundo a mãe, Paula Lavigne, ateia convicta.
A fé da prole fazia sentido para Caetano. “Minha geração teve que romper com a religiosidade imposta, a deles teve que recuperar a religiosidade perdida.”
Se o baiano vai andar com fé, porque a fé não costuma falhar, como já cantou o chapa Gilberto Gil, é uma história ainda em construção. Mas não nasceu ontem seu interesse pela escalada evangélica no país.
Caetano escreveu a apresentação de “O Povo de Deus”, livro que o antropólogo Juliano Spyer lançou em 2020. Nela contou como a ascensão pentecostal o instiga há tempos, ao contrário do “modo desatento e superficial com que o fenômeno era tratado por pessoas do meu ambiente”.
Caetano não queria repetir o erro de tantos outros da sua bolha e torcer o nariz para uma manifestação de fé tão vigorosa para uma parcela significativa da população.
Postou esses dias numa rede social que “não está vendo o Brasil quem despreza pentecostais e neopentecostais, que são maioria entre pobres e pretos, sobretudo entre pretas pobres, e produzem o gênero musical mais buscado depois do chamado sertanejo”.
Ele não é o primeiro secular, que é como evangélicos costumam chamar quem vive alheio à sua religião, a se aproximar do gospel. O pagodeiro Thiaguinho fez uma versão da mesma “Deus Cuida de Mim”.
Maria Gadú, mais da MPB, e o sertanejo Luan Santana prepararam um remake de “Sonda-me, Usa-me”, sucesso de uma das maiores cantoras evangélicas do país, Aline Barros. As duplas César Menotti e Fabiano e Marcos e Belutti também arrastaram um pé para o repertório religioso.
Kleber Lucas, de 54 anos, um pastor que se converteu ao neopentecostalismo com 17 anos e depois migrou para a igreja batista, é um gigante no segmento. Com um Grammy para chamar de seu, o de melhor álbum de música cristã em língua portuguesa, ele tem mais de 30 anos de carreira e milhões de discos vendidos.
Na eleição que deu por um triz a vitória a Lula, do PT, foi um exemplo bissexto de evangélico influente contra Jair Bolsonaro, do PL. Ele se recusou inclusive a participar do Louvorzão, evento evangélico sediado no Rio de Janeiro em julho, porque lá estaria o presidente. “Alguém que faz arminha com a mão em nome de Deus, não posso subir no palco com essa pessoa.”
Conheceu o casal Caetano e Paula Lavigne no segundo turno. Um amigo em comum falou dele para Lavigne, e veio o convite para jantar. Kleber levou um vinho, os anfitriões abriram mais garrafas da adega, e a conversa se estendeu até o sol raiar.
Lá para as três da manhã, o convidado pegou o violão e tocou sua canção. Caetano também dedilhou o seu, querendo aprender a música. Um “momento muito lindo” que selou a gravação que estreia neste domingo, conta o pastor.
“O que acontece é que ‘Deus Cuida de Mim’ vem num divisor histórico”, diz Kleber. “Estamos vindo de uma campanha muito disputada, em que a maioria evangélica apoiou o candidato derrotado. Quase que uma guerra escatológica, uma pretensa luta do bem contra o mal.”
A dobradinha com Caetano é uma oportunidade de mostrar que há nas igrejas muita gente que não bate bumbo para o bolsonarismo. “Quem tá na esquerda tá falando, poxa, tem evangélicos que não concordam com esse governo.”