Omissão e litigância de má-fé: como a Prefeitura de Anápolis foi decisiva na morte de paciente cardíaca
Portal 6 explica os passos dados pelo município para que cirurgia não ocorresse a tempo de salvar a vida de Claúdia Alencar
No dia 24 de junho de 2023, Cláudia Castro Macedo, de apenas 57 anos, teve a vida interrompida após passar meses travando uma batalha pela própria saúde com a Prefeitura de Anápolis. Ela sofria de estenose com insuficiência mitral e precisava de uma prótese com urgência.
Apesar de ter sido concedido pela Justiça um mandado de segurança favorável à operação, Cláudia teve o procedimento prorrogado por meses através de medidas protelatórias (manobras para atrasar o andamento ou execução de um processo) pela gestão municipal.
Ao Portal 6, familiares da vítima contaram os detalhes da crueldade, que acabaram por ceifar a vida de quem eles tanto queriam viva. A reportagem discorre a seguir.
A prótese valvular cardíaca, de nome técnico válvula mitral, que Claudia precisava é um item oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A cirurgia para colocá-la foi adiada por meses, nos quais ela contraiu uma faringite que a acompanhou até a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Evangélico, onde ela veio a falecer.
“Se ela tivesse feito a cirurgia ainda em maio, o que era o previsto inicialmente, ela poderia ainda estar viva. A Prefeitura entrou com medida de agravo ao fim do prazo de recorrer, depois de conseguirmos o mandado de segurança, e acabou adiando o procedimento para junho”, desabafou o marido, Cláudio Alencar.
No dia 08 de março eles entraram com o mandado e, no dia 08 de abril, o juiz deu cerca de 30 dias para a Secretaria Municipal de Saúde (Semusa) comprar a válvula. A gestão municipal decidiu utilizar todo o prazo que tinha para recorrer, emitindo uma negativa apenas no dia 18 de maio, deixando Cláudia esperando por todo esse tempo.
Uma das medidas que mais protelaram a cirurgia foi o agravo de instrumento com efeito suspensivo que a Procuradoria do Município de Anápolis impetrou para o não cumprimento do mandado. Os argumentos não foram acolhidos pela Justiça em segunda instância e teve ainda a reprimenda do Ministério Público.
“Nós nem tínhamos que ter entrado com o mandado, pois o serviço já estava no SUS. Tanto a prótese quanto o procedimento são acobertados pelo SUS, e eles falaram mais de uma vez que não são e que isso causaria um desequilíbrio no orçamento municipal, alegando que inviabilizaria a execução de programas de saúde para toda a população”, relatou a advogada e filha de Cláudia, Deborah Castro.
Apesar do apontamento, uma rápida consulta ao Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM (SIGTAP) do SUS é o suficiente para esclarecer a disponibilidade da válvula e do procedimento ofertados pelo Poder Público.
Além das dificuldade impostas pela Prefeitura para não realizar a cirurgia, a Procuradoria do Município de Anápolis ainda insinuou que a paciente tinha condições de arcar com os cursos, algo que lá atrás já havia provado que não tinha quando ingressou com a ação na Justiça, apresentando contracheque que não deixavam dúvidas a hipossuficiência.
Apenas no dia 1º de junho, em publicação feita no Diário Oficial do Município (DOM), a liminar foi cumprida e a compra da prótese foi confirmada, porém mais de 20 dias depois do prazo. Foi tarde demais.
Agravantes
Duas questões jurídicas também influíram no processo, dividindo a opinião de magistrados e do Ministério Público (MP) frente à Procuradoria do Município. Uma delas foi a chamada periculum in mora, que vem do latim e significa basicamente “perigo na demora”.
A alegação foi negada pela gestão municipal, segundo a qual não havia problema algum em postergar o processo, daí a litigância. Após poucos meses, a paciente veio à óbito e o apontamento se provou correto. Todavia, o próprio MP sinalizou, através de análise executada pelo próprio Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário (NATJUS), a urgência da solicitação e a partir dos dados apresentados pela paciente.
Entre as diversas questões colocadas pela Prefeitura, apontadas como errôneas pelo próprio NATJUS, está também a inexistência do fumus boni iuris, que se refere à presença de indícios emergenciais. Popularmente, é conhecida como “fumaça do bom direito”, e indica basicamente que “se há fumaça, há fogo”.
De modo que, como havia o risco físico da paciente, pela possível piora do quadro clínico até chegar a um ponto de irreversibilidade, caso ela não recebesse a prótese, havia a fumaça indicando o perigo, portanto o caso carecia de agilidade.
Dentre as justificativas utilizadas pela promotora responsável pelo caso, ao barrar o procedimento, consta uma jurisprudência de 2007 no estado de Alagoas, defasada e pouco específica.
Reforça-se a ideia de que o fornecimento do serviço público de saúde à paciente lesaria a saúde pública como um todo, outra afirmação contrariada pelo MP. Nela não é expressa qual era a demanda e o estado de saúde do solicitante em questão, estabelecendo uma relação possivelmente incongruente entre os dois casos.
Final triste
Apesar de conseguirem superar o problema da falta de bolsas de sangue em Anápolis, a família viu as esperanças que tinham se esvaírem conforme o processo se arrastava. Entre os diversos argumentos para a demora do procedimento, houve até afirmações de que a troca de mando na secretaria de saúde municipal atrasaria o andamento do processo administrativo.
“O custeio do procedimento não é responsabilidade legal da Prefeitura, mas é moral. Atendi a Cláudia em novembro e indiquei a urgência do procedimento. Um filho chegou até a adiantar o casamento, de janeiro para dezembro, pois a expectativa era que em janeiro já ocorreria a cirurgia. Tem um ano que eu não converso com ninguém da Secretaria Municipal de Saúde, desde maio do ano passado. Hoje eu não quero conversa mesmo, acho que a corda já arrebentou, mas eu queria”, desabafou o cirurgião cardíaco Walter Vosgrau, que realiza as cirurgias pelo SUS no município.
Entre diversas afirmações infundadas, a gestão acabou impossibilitando o procedimento. Apesar de já ter feito o procedimento pelo SUS, em 2012, este requer a reposição da válvula no prazo máximo de 12 anos. Em junho de 2022 o Governo Federal decidiu que iria passar a “dividir” o custo de próteses cardíacas com as gestões locais, o que acabou levando Cláudia a esbarrar na Prefeitura de Anápolis.
O que restou foi o vazio, justificado por necessidades orçamentárias do município que se demonstram inalteradas, possivelmente da mesma forma que se mostrariam caso o procedimento fosse realizado.
“Ela era uma pessoa alegre, prestativa, dedicou a vida toda à família. Gostava de fazer companhia para o marido e filhos, nos ver bem, amava seu cachorrinho Theo. Era conhecida pela gargalhada gostosa e contagiosa que só ela tinha”, revelou a filha.
Apesar de ainda vivenciarem o luto, os familiares de Cláudia fazem questão de não se calarem diante da injustiça vivenciada, por mais doloroso que possa ser falar sobre o caso. A intenção deles é só uma: fazer com que isso não aconteça com ninguém mais na cidade, sobretudo quando a Justiça intervém a favor do paciente e a Prefeitura cruelmente usa de subterfúgios jurídicos para não cumprir.
“Queremos tornar pública esta situação, mesmo nos doendo muito, para que isso não se repita e nenhuma procuradora [do município] se proponha a impedir um procedimento de urgência sob alegações tão infundadas”, terminou o marido de Cláudia.