É assim a sina de mulheres que precisam interromper gestação legalmente em Anápolis

Aborto legal existe no Brasil desde a década de 1940, mas conveniências religiosas e omissões do poder público no município estão prevalecendo

Rafaella Soares Rafaella Soares -
É assim a sina de mulheres que precisam interromper gestação legalmente em Anápolis

Em dezembro de 2019, uma jovem de 26 anos passou de um sonho diretamente para um grande pesadelo. Grávida do primeiro e tão desejado filho, ela saiu de casa para um exame médico de rotina e descobriu que o feto tinha anencefalia.

Sabendo que depois do parto o bebezinho não sobreviveria e acometida por uma infecção urinária grave, a moça optou por interromper a gestação. O que ela não sabia era que, por morar em Anápolis, essa tarefa seria ainda mais árdua.

Presidente da OAB Mulher no município, Tatiane Ferreira foi a advogada que acompanhou de perto os dias de agonia da jovem. Ao Portal 6, ela contou que foi necessário superar uma série de obstáculos para realização do procedimento, que acabou sendo feito em Goiânia.

“A Secretaria de Saúde solicitou uma decisão judicial de aborto. Nesse caso, o pedido é feito em uma das varas criminais, depois é necessário parecer do Ministério Público e só então é proferida uma decisão. No caso que atuei, o juiz declarou suspeição por foro íntimo, ou seja, o processo foi encaminhado para outro juiz e só então foi proferida a decisão autorizando o aborto”, explicou Tatiane.

“Porém, a gestante não conseguiu realizar o procedimento em Anápolis, sendo necessário o encaminhamento do caso para a Secretaria de Saúde de Goiânia. O procedimento foi realizado lá, aproximadamente quatro dias após a autorização”, contou.

De acordo com a advogada, o aborto legal não ocorreu em Anápolis porque no município somente a Santa Casa de Misericórdia e a Maternidade Dr. Adalberto Pereira da Silva podem fazê-lo. Mas mesmo com a autorização da Justiça nas mãos, as duas unidades se recusaram, por questões religiosas, a atender a gestante.

Exigência desnecessária

No Brasil, o aborto é considerado legal quando a gravidez é resultado de estupro ou põe em risco a saúde da mulher desde 1940. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) também permitiu a interrupção no caso de fetos anencéfalos.

Pela legislação, em nenhuma dessas situações é obrigatório que a mulher tenha uma decisão judicial em mãos para realizar o procedimento. Mas em Anápolis é.

“Não é necessário qualquer tipo de decisão judicial, basta a vítima ou a grávida procurar a Secretaria de Saúde ou o hospital referência no assunto para realizar o procedimento denominado aborto terapêutico. Em Anápolis não ocorre dessa forma. Anápolis não realiza aborto”, explicou Tatiane Ferreira.

Na quarta-feira (19), o Portal 6 solicitou à Secretaria Municipal de Saúde (Semusa) dados sobre o aborto legal em Anápolis, questionando qual o protocolo do procedimento, onde é realizado, quantos foram feitos no último ano e em 2020, se teve alguma vítima menor de idade e quais os casos mais recorrentes registrados na cidade.

No dia seguinte, a reportagem teve de insistir para receber as respostas de cada uma das questões individualmente, mas isso não aconteceu.

Em nota genérica, a pasta se limitou a dizer que a cidade não tem “protocolo para a realização de aborto na rede do município, exceto por eventuais demandas judiciais que, quando acontecem, são repassadas a prestadores conveniados e avaliadas pelos mesmos para a tomada das providências cabíveis.”

Após receber essa resposta, o Portal 6 também perguntou o por quê de um protocolo não existir e a Semusa disse apenas que é “por não ser um procedimento de rotina”.

Negativa dos médicos

Como apontado pela presidente da OAB Mulher de Anápolis, as únicas duas unidades que possuem estrutura para realização do aborto legal em Anápolis, e que são conveniadas com a Prefeitura, não o fazem por razões religiosas.

Por Lei, os médicos podem alegar objeção de consciência para não precisar fazê-lo. Essa justificativa se baseia no direito à liberdade de pensamento, crença e de consciência.

No entanto, em casos de urgência ou quando não há outro profissional para realizar o atendimento, essa alegação deixa de ser válida e o médico precisa socorrer a paciente.

No caso do aborto legal, a Legislação ainda garante que as mulheres devem ser respeitadas, de maneira que ninguém as tentem convencer de não interromper a gestação, e precisam receber atendimento humanizado.

Intervenção política

Não bastassem todas as dificuldades impostas às grávidas para o aborto legal em Anápolis, toda a Câmara Municipal também trabalha para fazer com que os procedimentos não aconteçam na cidade.

Uma Lei aprovada pela Casa de Leis em 2012, de autoria do vereador Pedro Mariano (DEM) e sancionada pelo então prefeito Antônio Gomide (PT), impede que mulheres que necessitem do procedimento sejam sequer atendidas pela rede pública.

Há pouco mais de um ano, atuais legisladores do município concordaram com unanimidade em instituir no calendário de Anápolis o Dia Municipal de Conscientização Contra o Aborto e em Favor da Vida. Pelo texto, a comemoração’ deve ser celebrada sempre na segunda sexta-feira do mês de maio.

Intervenção religiosa

Eventualmente, entidades religiosas também se unem para promover passeatas e marchas a favor da vida pelas ruas de Anápolis, como ocorreu na ‘marcha dos santos inocentes’, em 2017, e no protesto contra o aborto, em 2018.

O caso mais marcante, porém, é do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz. presidente da ONG Pró-Vida de Anápolis, que em 2016 foi condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a pagar R$ 60 mil de indenização depois de impedir a interrupção de gestação que já tinha sido autorizada pela Justiça.

A intromissão ocorreu em 2005, quando o líder religioso impetrou um habeas corpus para impedir que uma grávida realizasse o abordo de um feto diagnosticado com síndrome que inviabiliza a vida fora do útero.

Na época, sob autorização a Justiça, a mulher saiu de Morrinhos para Goiânia e já havia tomado remédio para induzir o parto quando foi mandada para casa.

É que chegou no hospital uma decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, que atendia ao pedido do padre e proibia a continuação do procedimento.

A gestante agonizou por oito dias, até que retornou ao hospital e o feto morreu após o parto.

https://portal6.com.br/2020/08/22/maior-autoridade-da-igreja-catolica-em-anapolis-diz-que-aborto-de-crianca-estuprada-foi-assassinato/

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